O SILÊNCIO

Silêncio; silence.
Fotografia de Mohammad Alizade

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O SILÊNCIO

tanta vezes o imploraste,
pois aí o tens.
não o quero, senhor!
pois sim, hás de escutá-lo,
conhecer todas
e cada uma das suas notas.
não consigo, senhor!
consegues, pois: basta que cales
tudo em ti,
uma coisa de cada vez,
como se ocultasses os buracos
de uma flauta

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A NOITE

Noite, galáxia,
Fotografia de Guille Pozzi

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A NOITE

deixamos a lâmpada para trás.
uma cancela separa-nos da noite,
dos arbustos negros que entortam na extremidade

Púlcreo desencantou um maço de cigarros.
os fósforos tremem um pouco,
depois a fumaça sobe pela galáxia

é tão bom viver como nos der na real gana
diz ele

cheira a ervas secas e a bosta fresca

debaixo dos nossos pés, a terra em gelo
geme como os ossos dos velhos

faz-se tarde.
é melhor trincarmos peneiras de funcho,
esfregarmos as mãos com hortelã
digo eu.
é assim que um tipo se faz adulto,
dá trabalho

quanto à noite, que dizer
senão que nos parece um reino incompreensível?

sabe tão bem mijar sem medo de nada
digo eu.
Púlcreo acena com a cabeça: tão bem
diz ele

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SERÁ SEMPRE UMA ESPÉCIE DE PRÓLOGO

Old house, in ruins. Maison ancienne, en ruine. Vecchia casa, in rovina. Casa antigua, en ruinas. 古い家、廃墟。
Fotografia de Dimitris Vetsikas

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SERÁ SEMPRE UMA ESPÉCIE DE PRÓLOGO

silêncio, a casa abandonada,
o olhar em fuga pelas paredes sem cal,
as vigas a céu aberto,
a cauda das estrelas,
os estalidos,
o chão sem fundo sobre o abismo da terra,
os antigos móveis que empilharam, em cujas gavetas
permanecem numa dignidade de aristocratas defuntos
as memórias e o caruncho,
o amor e a solidão absoluta

silêncio, sim.
a casa que deixámos decair, como se fosse,
por assim dizer, uma religião esquecida

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ÔNFALO

Slovenčina
Fotografia de Slovenčina

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ÔNFALO

em Delfos, nas entranhas vertiginosas de uma gruta,
o teu rosto – ínvio e morto – ainda hoje me procura

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AMOR

Margarida branca, white daisy, marguerite blanche,
Fotografia de Bess Hamiti

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AMOR

era no tempo das flores,
o sol estava para lá dos cílios,
no ar sentia-se o desenho vibrante de um zangão.
deitado na erva, eu não pensava em nada,
nem sequer no silêncio

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CINZAS

Andreas Lischka - wood
Fotografia de Andreas Lischka

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CINZAS

para Amélia Pereira, minha avó

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o cheiro das cinzas é quase
tão indecifrável quanto
a efusão da tinta.
com elas escrevemos
não palavras, mas o silêncio,
não a manhã, mas memórias,
não o fim, mas um rosto –
também ele impossível
de dizer,
seja de que forma for

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