Da luz

Filippo Lippi - Madona com Menino e dois anjos, c. 1465
Filippo Lippi, Madona com Menino e dois anjos, c. 1465

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DA LUZ

foi indubitavelmente numa manhã assim
nascida da indulgência da luz
sem vafrícia,
sem balofice,
sem unhas iníquas na sombra,
que Vilhelm Hammershøi pintou
o que também nos seus retratos viu Vermeer
ou o que no rosto de Lucrezia Buti atingiu Fra Filippo Lippi

não tocamos as coisas,
somos antes tocados pelo movimento leve e sereno
que entre elas e nós
é a profundidade tangencial do espírito
ou, dito de outro modo,
é o nosso olhar reconciliado com a lente do poema

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Logótipo Oficial 2024

Meditação, Lago Lucerna

Albrecht Fietz - mountains
Fotografia de Albrecht Fietz

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MEDITAÇÃO, LAGO LUCERNA

então de súbito o sol aclara o vidro opaco
e enche de silêncio o espaço.
é um sinal de que talvez dias mais propícios nos aguardem à puridade
e de que talvez nos encontrem numa plataforma confusa
onde comboios param e partem a toda a hora,
de que talvez esses dias fastos nos coloquem a mão sobre o ombro
e conheçam o nosso nome,
e de que então de súbito saibamos exatamente quem somos,
iluminados por uma paz em tudo igual a esta paz,
igual à que nos frescos de Pompeia e de Herculano produzem
o vermelho-cinábrio e o ocre e o azul,
igual à que possuem certas palavras quando numa manhã anódina,
numa manhã como esta, escambrando o céu sobre o Lago Lucerna,
alguém as murmura com amor, sem pressa, ao nosso ouvido

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Logótipo Oficial 2024

Já sabes onde me encontrar

Nevoeiro na estrada, com casas. Mistério.
Fotografia de Pierre Pellegrini

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JÁ SABES ONDE ME ENCONTRAR

já sabes onde me encontrar:
no sítio onde o génio e o imbecil trocam de posição
e às vezes pelejam, como dois garotos no recreio.
terei nas mãos os mesmos dedos, mais queimados
pelo cigarro.
usarei o casaco elegante que me ofereceste,
quando não tinha outro.
prometo não dececionar-te:
repetirei a história de Tristão e Isolda de que tanto gostas,
ou a triste sina de algum novo compositor,
ou alguma coscuvilhice erudita entre as nove filhas de Mnemósine

não me peças explicações nem me dês conselhos:
sempre detestei a verdade

prefiro que abras as janelas para o sol entrar,
ou me tragas a quieta poesia de um ramo de malmequeres

não sou ambicioso: sabes que nunca fui.
basta-me o amor sincero, a beleza de Bach
e o teu corpo no lugar onde (por muitas fogueiras
que ardam) jamais conseguirei aquecer-me

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Leitura do poema no Youtube

Não é esse o poema que eu quero

Nikos Georgiopoulos
Fotografia de Nikos Georgioupoulos

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NÃO É ESSE O POEMA QUE EU QUERO

não é esse o poema que eu quero,
mas aceito esta paisagem agreste que o sol incessantemente acutila
(mesmo à noite, mesmo entre as páginas devidas por Homero aos deuses da Ática,
mesmo quando sobem pelo cachimbo pequenas labaredas esperançosas),
aceito estas moscas tresloucadas de cor azul
e aceito o ardimento conjunto dos olhos e dos lábios e da nostalgia de agosto,
aceito este pó rebatendo mais em desespero no pórfiro das velhas colunas quebradas
e aceito a solidão dos metrosíderos em cujo tronco de escamas me deito às vezes,
aceito as minhas próprias cáligas quase desfeitas
e o meu gládio vencido por fim pelo vermelho da ferrugem

não me perguntes, amor, que poema é esse que eu quero,
verás como se transformam as lagartas em asas e como nos abandonam,
como caem entre as pedras da calçada as rudes cabeças daninhas das ervas
(e como germinam contra nós os silêncios de que gostam as ervas),
verás como todos os impérios se cansam do imperativo modo de prevalecer
e como os próprios deuses de Homero se calaram e esqueceram do ofício dos aedos
e como este mar e esta terra nos sepultam no devido tempo a nós devido

não perguntes.
jamais saberei dizer-te como dói falhar o poema,
como se contorce no mais principal de nós a profunda dor do incumprimento,
essa que leva o pescador Aónio para casa, erguida num graveto
(esse peixe-outro, insípido, praticamente ridículo),
essa dor de Tétis morto Aquiles diante dos seus maravilhados olhos tristes
e dos seus selados lábios e da sua nostalgia de mãe-agosto-para-sempre

não me perguntes, meu amor.
não saberia responder-te

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Logótipo Oficial 2024

Viburnum Opulus

Viburnum
Fotografia de Andrey Grachev

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VIBURNUM OPULUS

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para a Céu, pensando na paz

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sobre a neve de março esmagaram
com violência bagas de viburno.
o vermelho queima em todos os lugares do mundo,
no gelo também –
digamos que possui
a voz vigorosa de um grito.
chamam a este arbusto aqui, a este fruto,
kalyna.
acicata ele na boca o sabor amargo
como um beijo na despedida –
Yana, Pavlo, Olena, Ruslan, Lesya, Andriy,
Lyuba, Yaroslav, Nadezhda, Vyacheslav
eles sabem que em abril a neve cairá,
e em maio.
e que uma grande paz alvacenta cobrirá a cidade

desta violência tudo se há de lavar –
tudo

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Händel, Suíte n.º 4

aeroporto
Fotografia de Monique Bruen

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HÄNDEL, SUÍTE N.º 4

aeroporto internacional de Arlanda, cinco e dez p.m., hora local.
vento intenso vindo do norte, da região de Abiskojaure.
em fundo um grupo de estudantes de conservatório ensaia a sarabanda
de Georg Friedrich Händel, opus HWV 437.
por dentro a água chocalha no lugar dos pensamentos.
nominamos até a mágoa mais profunda.
olhos tão claros e tão belos os teus!
os meus são baços, da cor do mar nos dias frios.
olha só esse pássaro tão longo de cauda azul: SCANDINAVIAN AIRLINES!
então é agora? e até quando? o que significa para sempre?

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A Solidão, segundo Paul Malvaux

Paul Delvaux, Loneliness, 1956
Paul Delvaux, Loneliness, 1956

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A SOLIDÃO, SEGUNDO PAUL DELVAUX

este é o lugar mais feio da cidade:
linhas de alta tensão, vagões esquálidos, travessas fedorentas
por onde saltitam os pincéis e as trinchas de creosoto,
nesgas de terra vermelha ao longo dos carris,
gente que esmaga beatas e as semeia entre tufos audazes
de cerefólio e de funcho

mas a noite, como os operários da manutenção, salva
este horror.
aos poucos os comboios intervalam-se mais,
o sossego faz esmorecer o rancor dos cigarros,
as primeiras luzes acordam nos lampiões anacrónicos
e a lua (inteiriça, dura) atira-se sobre o pontilhão de ferro

ela, chamei-lhe Laura – e não tenho ainda outro nome –
chega sempre tarde.
reconheço-lhe o som dos tacões no pavimento,
o sobressalto, o sobretudo vermelho que a ilumina na penumbra.
ultimamente hesita, caminha mais devagar, quase espero
que se volte de repente, afogueada, contra o meu olhar

imagino que Laura pressinta o mesmo que eu:
que as trevas transfiguram os lugares feios,
que as trevas tornam mais aceitáveis os fios confusos do telégrafo,
que a solidão dos edifícios encardidos e os carris sujos
nada importa se alguém nos olha, mesmo que à distância,
mesmo que recriminando em silêncio a nossa miserável vocação

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