AS GINGKO BILOBAS DE HIROSHIMA

Terence Starkey - Hiroshima
Fotografia de Terence Starkey

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AS GINGKO BILOBAS DE HIROSHIMA

Para Tsutomu Yamaguchi, engenheiro naval, o mais célebre dos hibakusha
Para Akira Hasegawa, professor, cujos corpo e casa desapareceram pelo ar, como pó de borboletas

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depois do terror foi preciso limpar a cidade.
os funcionários imperiais vinham em turnos,
metiam as pás nos restos polvorentos da pedra,
varriam a lama de um lado para o outro,
ouviam o vento ganir nas cinzas – o pior de tudo era
este assobio do silêncio, esse guinchar do ferro nas aérolas sem vidro,
nos escombros das pontes que dançavam como dobradiças,
nas cabeças que morriam mais devagar do que os outros órgãos

os funcionários do império iam
e vinham em turnos

às vezes retiravam e apertavam o barrete cheios de comoção,
guardavam em pequenos sarcófagos de cedro
os esqueletos não inteiramente consumidos pelo grande lume

foi preciso – foi preciso – reaprender
o mapa do pensamento:
ali era o zoológico, acolá a escola primária,
aquilo – aquela sombra calcinada no pavimento – uma mulher
com o filho ao colo

às vezes caía-se de joelhos no lugar exato
que havia sido o esconderijo puramente intacto de um rito,
de um beijo, de uma despedida

nunca as palavras se pareceram tão poucas no entulho,
nem tão amargas,
nem tão dementadas

meses a fio repetiu-se o desmantelar, o esquecer,
o prosseguir – o pior de tudo era
o caroço da morte,
o modo como escancarava ela a garganta
e permanecia

Ichiro Kawamoto, a quem Philip Levine dedicou
um poema portentoso, afirmava que na primavera de 46 aconteceu
um milagre:
aí por meados de março, algum verde soltou a língua
na paisagem infernal

– olhávamos e víamos brotos sair dos ramos espedaçados
das gingko bilobas,
renasciam pequenas pontas impregnadas de seiva

e isto – pensavam os funcionários do imperador –,
isto – pensamos nós – isto queria dizer alguma coisa

21.03.2023

O ABSURDO

Guillaume de Germain
Fotografia de Guillaume de Germain

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O ABSURDO

dói imensamente tudo.
a folha dói nos dedos,
o rosto dói contra o silêncio,
dói a sombra da cidade
e o ardor que deixamos preso
à solidão

dói imensamente tudo.
até à poesia
até esse vazio onde
tantas vezes,
vivo e absoluto,
cabe o absurdo

21.03.2023

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CAFÉ

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Fotografia de ldia (via Unsplash)

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CAFÉ

bebo café, continuarei a bebê-lo como
quem lança cuspo às mãos ou um fio de água
às pedras que se talham

as noites são às vezes cruéis, às vezes impenetráveis
no som rouco que desce pelas paredes, às vezes
insípidas

não é fácil buscar esse outro lugar
de memórias, onde nos guardamos do óxido, esse
outro lugar mavioso, feérico das palavras, que
por nossa causa fora, um dia ditas
com amor extremo

as noites às vezes são densas, é preciso
por isso parafinar as mãos, impermeabilizar-lhes
o ardor

bebo café, continuarei a bebê-lo até
que o poema resgate o belo que há, que houve
na vida, até ser dia, até que se britem
os estuporados átomos da melancolia, até ser leda
a luz que atravessa a forma informe das palavras, até
o café frio mais não ser do que o nosso
próprio sangue caindo em nós,
muito de cima, muito dentro, sem
amparo

(março de 2020)

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O SILÊNCIO

Silêncio; silence.
Fotografia de Mohammad Alizade

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O SILÊNCIO

tanta vezes o imploraste,
pois aí o tens.
não o quero, senhor!
pois sim, hás de escutá-lo,
conhecer todas
e cada uma das suas notas.
não consigo, senhor!
consegues, pois: basta que cales
tudo em ti,
uma coisa de cada vez,
como se ocultasses os buracos
de uma flauta

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A NOITE

Noite, galáxia,
Fotografia de Guille Pozzi

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A NOITE

deixamos a lâmpada para trás.
uma cancela separa-nos da noite,
dos arbustos negros que entortam na extremidade

Púlcreo desencantou um maço de cigarros.
os fósforos tremem um pouco,
depois a fumaça sobe pela galáxia

é tão bom viver como nos der na real gana
diz ele

cheira a ervas secas e a bosta fresca

debaixo dos nossos pés, a terra em gelo
geme como os ossos dos velhos

faz-se tarde.
é melhor trincarmos peneiras de funcho,
esfregarmos as mãos com hortelã
digo eu.
é assim que um tipo se faz adulto,
dá trabalho

quanto à noite, que dizer
senão que nos parece um reino incompreensível?

sabe tão bem mijar sem medo de nada
digo eu.
Púlcreo acena com a cabeça: tão bem
diz ele

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SERÁ SEMPRE UMA ESPÉCIE DE PRÓLOGO

Old house, in ruins. Maison ancienne, en ruine. Vecchia casa, in rovina. Casa antigua, en ruinas. 古い家、廃墟。
Fotografia de Dimitris Vetsikas

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SERÁ SEMPRE UMA ESPÉCIE DE PRÓLOGO

silêncio, a casa abandonada,
o olhar em fuga pelas paredes sem cal,
as vigas a céu aberto,
a cauda das estrelas,
os estalidos,
o chão sem fundo sobre o abismo da terra,
os antigos móveis que empilharam, em cujas gavetas
permanecem numa dignidade de aristocratas defuntos
as memórias e o caruncho,
o amor e a solidão absoluta

silêncio, sim.
a casa que deixámos decair, como se fosse,
por assim dizer, uma religião esquecida

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