PAISAGENS TÁRTARAS

Old Trabant.
Fotografia de Vojta Kucer

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PAISAGENS TÁRTARAS

paisagens tártaras,
montanhas, campónios, silêncio.
gemer de um velho arado anacrónico.
silêncio.
de quando em quando o altear das vozes,
bois, mulheres de lenço atado na cabeça, viúvas.
silêncio

as searas estendem-se até ao Cáucaso.
as mulheres estendem-se até ao Cáucaso.
a ceifa estende-se até ao Cáucaso

sufoca-se

água e pão até ao Cáucaso.
crianças e velhos deitados até ao Cáucaso.
cansados, ressonando, até ao Cáucaso

linguagem universal,
restos mortais de um Trabant na várzea,
córnea oxidada, trevo engolindo-o
devagar

(o verde vence sempre na política!)

muro de cimento. ou será de betão?
áspero, sujo, tisnado

a criança trouxe giz, trouxe sol,
gatafunhos, um modo seu de ser flor,
um pai distante, cacos
em forma de coração

no açafate, um frasco de mel, figos,
uvas, pão.
dedos carinhosos: como antigamente.
mas a lâmpada tantas vezes nos acorda.
nem sequer de vidro. acesa, sim.
de jejum

domingo.
coisas perfeitas, domesticadas, mansas.
almoço em família, pensamento longe, nos arredores da lógica.
ela veste calças de couro e botins de camurça.
os cabelos louros caem-lhe sobre os ombros, lisos como
linhas de água, independentes

domingo.
conversa-se sem pressa, conserva-se a harmonia.
o sorriso é de lei: um dobrão antigo.
sorrio, sorrimos: é domingo!
ela compreende, talvez compreenda,
oxalá compreendesse. pensamento longe,
em metades, como um frasco partido

cheiro de merda quente,
animais trotando devagar, entre
o seu destino e o seu destino

pegadas e fezes pesando
no meu chão: animal entre
animais, afundo

a chuva lava agora a posteridade,
o alcatrão e os telhados, persianas, quintais, contentores, goteiras,
chinelos esquecidos na varanda, focinhos de cães,
a vidraça esquálida no posto da polícia, tudo,
gasóleo, urina, restos de gelado, metades de pão,
frases em língua estrangeira, pensamentos tardios,
a vil melancolia do sul, tudo

um oleado amarelo mantém a ordem.
perfume de açucenas, detergente de hotel, limpeza.
a cabeça lavada, lavada, lavada!

maio de 2015

CONSOADA

Casa em ruínas.
Fotografia de Sven Fennema

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CONSOADA

num canto penumbroso da casa, Púlcreo observava-se diante
um espelho antigo, estremecendo
à passagem do ar frio
pelas frinchas

os meus avós viveram aqui

a lareira mascarrada, sem fogo, com os tijolos à mostra
não convencia ninguém.
nem ela, nem as janelas presas por arame, desvidradas

só as silvas, com as suas línguas
farpadas, arrepiavam

mal os conheci.
esta noite seremos só eu e a minha mãe

havia restos da telha por toda a parte.
com os cacos desenhávamos cruzes no chão.
no meio do entulho esmagado rebentavam
pés de azevinho –
como podia o visqueiro nascer ali
era uma boa,
era uma excelente pergunta

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FUNCHO

Schwoaze
Fotografia de Sabine (Pixabay)

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FUNCHO

fim de tarde, degraus musgosos, uma azenha
desmantelada, tufos de erva alta
crescidos sobre o rio, algas
nas águas límpidas, agriões, o azul
da buglossa, malmequeres amarelos, o branco
da hortelã-brava, o roxo dos ervilhais
e da lavanda

fim de tarde, degraus musgosos, silêncio
pairando na orla dos caminhos.
acocorado na terra húmida, como quem
se lava no verde, pulmões abertos para o esplendor
do funcho!
pensamento sem portas ou janelas.
como quem tivesse descido ao paraíso!

18.04.2015

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ENFARNA

enfarna, flor de oliveira, primavera, verão
Fotografia de Josevi Parra

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ENFARNA

lia um poema de Tassos Denegris,
a terra era seca,
as oliveiras floridas mostravam
como se pode e como se deve.
o sol empunhava a mão
contra as pedras,
havia um aroma subtil
no pó.
as metáforas faiscavam em pouco
e calavam-se:
enfarna era a palavra,
a palavra que me seduzia

01.04.2023

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O ABSURDO

Guillaume de Germain
Fotografia de Guillaume de Germain

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O ABSURDO

dói imensamente tudo.
a folha dói nos dedos,
o rosto dói contra o silêncio,
dói a sombra da cidade
e o ardor que deixamos preso
à solidão

dói imensamente tudo.
até a poesia,
até esse vazio onde
tantas vezes,
vivo e absoluto,
cabe o absurdo

21.03.2023

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CAFÉ

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Fotografia de ldia (via Unsplash)

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CAFÉ

bebo café, continuarei a bebê-lo como
quem lança cuspo às mãos ou um fio de água
às pedras que se talham

as noites são às vezes cruéis, às vezes impenetráveis
no som rouco que desce pelas paredes, às vezes
insípidas

não é fácil buscar esse outro lugar
de memórias, onde nos guardamos do óxido, esse
outro lugar mavioso, feérico das palavras, que
por nossa causa fora, um dia ditas
com amor extremo

as noites às vezes são densas, é preciso
por isso parafinar as mãos, impermeabilizar-lhes
o ardor

bebo café, continuarei a bebê-lo até
que o poema resgate o belo que há, que houve
na vida, até ser dia, até que se britem
os estuporados átomos da melancolia, até ser leda
a luz que atravessa a forma informe das palavras, até
o café frio mais não ser do que o nosso
próprio sangue caindo em nós,
muito de cima, muito dentro, sem
amparo

(março de 2020)

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A NOITE

Noite, galáxia,
Fotografia de Guille Pozzi

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A NOITE

deixamos a lâmpada para trás.
uma cancela separa-nos da noite,
dos arbustos negros que entortam na extremidade

Púlcreo desencantou um maço de cigarros.
os fósforos tremem um pouco,
depois a fumaça sobe pela galáxia

é tão bom viver como nos der na real gana
diz ele

cheira a ervas secas e a bosta fresca

debaixo dos nossos pés, a terra em gelo
geme como os ossos dos velhos

faz-se tarde.
é melhor trincarmos peneiras de funcho,
esfregarmos as mãos com hortelã
digo eu.
é assim que um tipo se faz adulto,
dá trabalho

quanto à noite, que dizer
senão que nos parece um reino incompreensível?

sabe tão bem mijar sem medo de nada
digo eu.
Púlcreo acena com a cabeça: tão bem
diz ele

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