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TEMPO CERTO
nem depressa nem devagar, mas no tempo certo,
na cauda do cometa, durante o gole de café,
enquanto se adormece uma criança
e tudo deveria durar assim, como uma infância,
a sarabanda de Bach, o beijo, um poema
caderno de poesia de João Ricardo Lopes
.
TEMPO CERTO
nem depressa nem devagar, mas no tempo certo,
na cauda do cometa, durante o gole de café,
enquanto se adormece uma criança
e tudo deveria durar assim, como uma infância,
a sarabanda de Bach, o beijo, um poema
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AQUELES DIAS
alguém disse que o tempo se faz no meio
do vácuo, entre dois parêntesis absurdos
as tílias, o canto do chapim, o aroma do funcho
são inesperadamente piedosas vírgulas
a que nos agarramos num desespero de náufragos
e sem sabermos porquê
.
ENTRE A PRIMAVERA E O VERÃO
os meus sobrinhos são o mais parecido que tenho
com a minha infância
gosto deste tempo,
do perfume venturoso das ervas frescas,
do modo como as manhãs nos ressuscitam das noites insones
e do torpor.
gosto deste sol que rutila numa parte da montanha
e torna mais vívidos os lugares da água,
da vermelhidão dos cravos,
dos olhos dos pássaros,
de tudo
os meus sobrinhos brincam no pátio, alteiam a voz,
imitam a imensidão dos gatos
pedem-me às vezes uma história,
pedem que lhes faça pendular o baloiço,
que inculque no seu tempo um lugar novo, indecifrável
entre a primavera e o verão – é aí que encontro
o meu próprio eu,
a minha secreta preferência pelas coisas,
a minha plenitude
a água corre ao tanque
e os pardais lavam o ar com o seu labor incessante.
olho as cerejas e os morangos entre as folhas
e os meus sobrinhos sorriem comigo
é aí, algures no quintal – é aí
que encontro esse bem que tão bem conheço
e de que tão pouco (ainda hoje) posso ou sei dizer
a infância é a melhor definição do amor
afortunado quem assim a descortina,
cismando nas crianças que brincam
sem ideia da luz
que ao redor de si e dos outros fazem transbordar
absolutamente álacre e limpa
.
CAMPOS DE ALFAZEMA, PROVENÇA
dificilmente se olvida um gesto de ternura,
um vestido vaporoso correndo
entre ângulos de luz solar ao cair do dia,
ou os cabelos loiros que esvoaçam entre linhas
intermináveis de alfazema florida
dificilmente se esquece o perfume
que em junho ou julho de um ano antigo,
numa aldeia qualquer nos arredores da Provença,
nos prende à substância do amor,
que é como se sabe o oposto da morte
dificilmente se perdoa a nós mesmos
o quilate de uma lembrança assim,
o corpo (leve de anos) correndo atrás daquela
que no campo, envolta em luz, nos foge
rindo, triunfante, para o lado da memória
dificilmente pode alguém imitar o poema
perfeito, ainda que guardando no bolso
alguns restos desse sol, algumas migalhas
dessa brisa, alguns pedaços desse riso,
algumas sobras desse amor com que o escrevias
.
LUZ
lâmpada tão acesa,
que nela se abriguem
os pássaros
.
DEUS
Mendonça encontrava deus nos baldios,
Eliot descobriu-o (a ele e a três leopardos albinos)
debaixo de um junípero azul,
Cocteau tocou-o na face mais fresca
da almofada
aos quarenta e cinco preocupa-me
em lado nenhum o ter descortinado ainda
talvez desconfie do vento, do vento que desalinha
os cabelos e nos enregela os ossos,
quando rente ao mar caminhamos lado a lado
e nevoenta – espumosa – a tarde cai sobre a cidade
e dedos longínquos de vapor – invisíveis –
acendem e ocultam e amam os lampiões
.
CAVE
noutra parte da casa guardam o vinho, o azeite, o mel,
as nozes –
ânforas e vasilhas, cântaros, tulhas,
mas também a palha e o serrim, o pó,
teias de aranha gigantescas, pegadas de roedores
a forma talhada do silêncio
é um tesouro mal visitado,
casto, sem ar
debaixo da terra, num buraco, guardou o avô
cartas que a luz não pode ler.
e eu penso nesse lugar morto,
no quanto as palavras devem assentar
e não ferir –
digamos, como sucede nos sonhos
onde as palavras devoram metal,
mas que ninguém escuta
de tão calafetadas e duras que são
guardam aí o inominável,
ecos, vagas alusões, cheiros humedecidos
de papel e tinta, estalidos nas traves,
gritos que o tempo apagou
em resumo, um silo enorme a nossa vida –
cântaros, arcas, potes e bilhas,
sacos de serapilheira empilhados no escuro,
no nada
guardamos tudo –
o vazio, ele também