E que há de mais livre que o que nada deseja neste mundo?
Tomás de Kempis, Imitação de Cristo
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nunca é tarde demais.
procura a força do deserto, a distância,
procura a luminosidade dos grãos movediços e duros,
o adobe,
o cheiro das dunas,
o vento dobrando-se no erg,
procura-te na voz do nazareno,
na secura dos essénios,
na abstinente leveza dos berberes de túnica azul
nunca é tarde demais.
despoja-te do tempo e do espaço, despe-te da sombra e da luz.
nada existe no mundo que seja maior,
ou mais do que tu
foi indubitavelmente numa manhã assim
nascida da indulgência da luz
sem vafrícia,
sem balofice,
sem unhas iníquas na sombra,
que Vilhelm Hammershøi pintou
o que também nos seus retratos viu Vermeer
ou o que no rosto de Lucrezia Buti atingiu Fra Filippo Lippi
não tocamos as coisas,
somos antes tocados pelo movimento leve e sereno
que entre elas e nós
é a profundidade tangencial do espírito
ou, dito de outro modo,
é o nosso olhar reconciliado com a lente do poema
então de súbito o sol aclara o vidro opaco
e enche de silêncio o espaço.
é um sinal de que talvez dias mais propícios nos aguardem à puridade
e de que talvez nos encontrem numa plataforma confusa
onde comboios param e partem a toda a hora,
de que talvez esses dias fastos nos coloquem a mão sobre o ombro
e conheçam o nosso nome,
e de que então de súbito saibamos exatamente quem somos,
iluminados por uma paz em tudo igual a esta paz,
igual à que nos frescos de Pompeia e de Herculano produzem
o vermelho-cinábrio e o ocre e o azul,
igual à que possuem certas palavras quando numa manhã anódina,
numa manhã como esta, escambrando o céu sobre o Lago Lucerna,
alguém as murmura com amor, sem pressa, ao nosso ouvido
conheci um homem cuja obsessão era o peso da terra,
o peso que as coisas fazem ou têm sobre a terra,
as coisas que os homens fizeram e não as que deus fez,
o peso portanto das coisas que são a obra dos filhos de deus,
coisas que são os prédios e as pontes, as finanças e a filosofia.
esse homem vivia na crença de que a terra ia afundar-se,
tinha a certeza de que se afundaria com o peso excessivo do homem,
e vivia, portanto, digamos, numa loucura ansiosa
cada vez que um terramoto abria brechas pavorosas no chão
esse homem levantava o pensamento à altura de uma praga
e dizia
os homens puseram peso demais sobre as minhas costas
e as minhas costas sacodem-se, coitadas,
são como a baleia no conto de Simbad.
isto vai acabar mal
cada vez que um furacão devastava à dentada a carne de uma cidade,
ou cada vez que um incêndio engolia com a sua língua atroz
todas as formas de todas as coisas julgadas seguras,
esse homem repetia-se,
as coisas pesam demais, as coisas pesam excessivamente.
o ponto fraco de cada coisa é a sua pata assente no desconhecido
e deus desfere às vezes um contragolpe irrespondível.
isto vai acabar mal
tenho a dizer-vos que na poesia todos os homens são desta loucura,
ou desta infame grandeza que olha as coisas
não como coisas em si, mas como a causa que as coisas são,
e por isso os homens loucos na poesia procuram o dizer sublime
como se procura um bote ou uma prece ou um minuto para pensar.
são homens que pensam que todas as coisas esmagam
e que as coisas redundam em pó
conheci uma vez um poeta. tenho a dizer-vos:
era um homem exatamente assim
já sabes onde me encontrar: no sítio onde o génio e o imbecil trocam de posição e às vezes pelejam, como dois garotos no recreio. terei nas mãos os mesmos dedos, mais queimados pelo cigarro. usarei o casaco elegante que me ofereceste, quando não tinha outro. prometo não dececionar-te: repetirei a história de Tristão e Isolada de que tanto gostas, ou a triste sina de algum novo compositor, ou alguma coscuvilhice erudita entre as nove filhas de Mnemósine
não me peças explicações nem me dês conselhos: sempre detestei a verdade
prefiro que abras as janelas para o sol entrar, ou me tragas a quieta poesia de um ramo de malmequeres
não sou ambicioso: sabes que nunca fui. basta-me o amor sincero, a beleza de Bach e o teu corpo no lugar onde (por muitas fogueiras que ardam) jamais conseguirei aquecer-me
não é esse o poema que eu quero,
mas aceito esta paisagem agreste que o sol incessantemente acutila
(mesmo à noite, mesmo entre as páginas devidas por Homero aos deuses da Ática,
mesmo quando sobem pelo cachimbo pequenas labaredas esperançosas),
aceito estas moscas tresloucadas de cor azul
e aceito o ardimento conjunto dos olhos e dos lábios e da nostalgia de agosto,
aceito este pó rebatendo mais em desespero no pórfiro das velhas colunas quebradas
e aceito a solidão dos metrosíderos em cujo tronco de escamas me deito às vezes,
aceito as minhas próprias cáligas quase desfeitas
e o meu gládio vencido por fim pelo vermelho da ferrugem
não me perguntes, amor, que poema é esse que eu quero,
verás como se transformam as lagartas em asas e como nos abandonam,
como caem entre as pedras da calçada as rudes cabeças daninhas das ervas
(e como germinam contra nós os silêncios de que gostam as ervas),
verás como todos os impérios se cansam do imperativo modo de prevalecer
e como os próprios deuses de Homero se calaram e esqueceram do ofício dos aedos
e como este mar e esta terra nos sepultam no devido tempo a nós devido
não perguntes.
jamais saberei dizer-te como dói falhar o poema,
como se contorce no mais principal de nós a profunda dor do incumprimento,
essa que leva o pescador Aónio para casa, erguida num graveto
(esse peixe-outro, insípido, praticamente ridículo),
essa dor de Tétis morto Aquiles diante dos seus maravilhados olhos tristes
e dos seus selados lábios e da sua nostalgia de mãe-agosto-para-sempre
não me perguntes meu amor.
não saberia responder-te
sobre a neve de março esmagaram
com violência bagas de viburno.
o vermelho queima em todos os lugares do mundo,
no gelo também –
digamos que possui
a voz vigorosa de um grito.
chamam a este arbusto aqui, a este fruto,
kalyna.
acicata ele na boca o sabor amargo
como um beijo na despedida –
Yana, Pavlo, Olena, Ruslan, Lesya, Andriy,
Lyuba, Yaroslav, Nadezhda, Vyacheslav
eles sabem que em abril a neve cairá,
e em maio.
e que uma grande paz alvacenta cobrirá a cidade