Não é esse o poema que eu quero

Nikos Georgiopoulos
Fotografia de Nikos Georgioupoulos

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NÃO É ESSE O POEMA QUE EU QUERO

não é esse o poema que eu quero,
mas aceito esta paisagem agreste que o sol incessantemente acutila
(mesmo à noite, mesmo entre as páginas devidas por Homero aos deuses da Ática,
mesmo quando sobem pelo cachimbo pequenas labaredas esperançosas),
aceito estas moscas tresloucadas de cor azul
e aceito o ardimento conjunto dos olhos e dos lábios e da nostalgia de agosto,
aceito este pó rebatendo mais em desespero no pórfiro das velhas colunas quebradas
e aceito a solidão dos metrosíderos em cujo tronco de escamas me deito às vezes,
aceito as minhas próprias cáligas quase desfeitas
e o meu gládio vencido por fim pelo vermelho da ferrugem

não me perguntes, amor, que poema é esse que eu quero,
verás como se transformam as lagartas em asas e como nos abandonam,
como caem entre as pedras da calçada as rudes cabeças daninhas das ervas
(e como germinam contra nós os silêncios de que gostam as ervas),
verás como todos os impérios se cansam do imperativo modo de prevalecer
e como os próprios deuses de Homero se calaram e esqueceram do ofício dos aedos
e como este mar e esta terra nos sepultam no devido tempo a nós devido

não perguntes.
jamais saberei dizer-te como dói falhar o poema,
como se contorce no mais principal de nós a profunda dor do incumprimento,
essa que leva o pescador Aónio para casa, erguida num graveto
(esse peixe-outro, insípido, praticamente ridículo),
essa dor de Tétis morto Aquiles diante dos seus maravilhados olhos tristes
e dos seus selados lábios e da sua nostalgia de mãe-agosto-para-sempre

não me perguntes, meu amor.
não saberia responder-te

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Händel, Suíte n.º 4

aeroporto
Fotografia de Monique Bruen

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HÄNDEL, SUÍTE N.º 4

aeroporto internacional de Arlanda, cinco e dez p.m., hora local.
vento intenso vindo do norte, da região de Abiskojaure.
em fundo um grupo de estudantes de conservatório ensaia a sarabanda
de Georg Friedrich Händel, opus HWV 437.
por dentro a água chocalha no lugar dos pensamentos.
nominamos até a mágoa mais profunda.
olhos tão claros e tão belos os teus!
os meus são baços, da cor do mar nos dias frios.
olha só esse pássaro tão longo de cauda azul: SCANDINAVIAN AIRLINES!
então é agora? e até quando? o que significa para sempre?

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A Solidão, segundo Paul Malvaux

Paul Delvaux, Loneliness, 1956
Paul Delvaux, Loneliness, 1956

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A SOLIDÃO, SEGUNDO PAUL DELVAUX

este é o lugar mais feio da cidade:
linhas de alta tensão, vagões esquálidos, travessas fedorentas
por onde saltitam os pincéis e as trinchas de creosoto,
nesgas de terra vermelha ao longo dos carris,
gente que esmaga beatas e as semeia entre tufos audazes
de cerefólio e de funcho

mas a noite, como os operários da manutenção, salva
este horror.
aos poucos os comboios intervalam-se mais,
o sossego faz esmorecer o rancor dos cigarros,
as primeiras luzes acordam nos lampiões anacrónicos
e a lua (inteiriça, dura) atira-se sobre o pontilhão de ferro

ela, chamei-lhe Laura – e não tenho ainda outro nome –
chega sempre tarde.
reconheço-lhe o som dos tacões no pavimento,
o sobressalto, o sobretudo vermelho que a ilumina na penumbra.
ultimamente hesita, caminha mais devagar, quase espero
que se volte de repente, afogueada, contra o meu olhar

imagino que Laura pressinta o mesmo que eu:
que as trevas transfiguram os lugares feios,
que as trevas tornam mais aceitáveis os fios confusos do telégrafo,
que a solidão dos edifícios encardidos e os carris sujos
nada importa se alguém nos olha, mesmo que à distância,
mesmo que recriminando em silêncio a nossa miserável vocação

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Janeiro

cais no inverno (Janeiro)
Fotografia de Maxime Barrell

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JANEIRO

manhã de sábado.
acordamos devagar na viração fria,
no cheiro forte que o mar traz em salpicos
e que as gaivotas elevam sobre
o paredão

o vento faz drapejar as bandeiras no cais,
atira-nos contra a luz,
esmaga-nos como espuma

recebo-te nos meus braços.
porém és tu quem me abriga

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Janeiro, memórias

Jean Vandijck - Mill in the fog
Fotografia de Jean Vandijck

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JANEIRO, MEMÓRIAS

sobe às vezes de dentro de nós, como por eclusas, a visão esquecida da mesma paisagem. e então o moinho roda, os mortos voltam, o velho passal enche-se de fragrâncias verdes, brotos, frutos. no mesmo lugar onde os herdeiros disputam hoje redes altas de arame o sol perpassa, há vozes, paz, crianças a correr, leves pássaros saltitando, paz

como nas iluminuras antigas vê-se tudo, tudo

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Solstício

Jörg Peter
Fotografia de Jörg Peter

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SOLSTÍCIO

nesse ano o quinquilheiro não apareceu.
esperámos por ele como se espera um dia de sol,
como se aguarda uma notícia vinda de França,
como se adivinha uma ninhada de pintos por Santo António

mas nem sinal da furgoneta,
da buzina de fole,
das ferragens batendo umas nas outras

a minha mãe contava comprar-lhe, se não me engano, um alguidar de cobre.
via-o já polido e brilhante, arrubinado, como a cor de um arrebol
um pouco antes do dia e do anoitecer

o adro encheu-se de gente,
uns para trazer, outros para levar bugigangas,
mas o descarado não veio

a luz foi minguando, até que os que ali restavam mal se viam uns aos outros.
por fim também eles debandaram.
só um cachorro sem dono ficou,
aninhado sob os braços do grande damasqueiro do padre Francisco

o inverno entrou pelos portões do cemitério

mortas de desgosto, as ervas tombavam no intervalo das pedras.
a tremer, coberto pelas finas camadas do frio, abri a porta de casa

vadio como era, também eu aluía nas pernas

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Fósforos

Fotografia de Kelly Sikkema

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FÓSFOROS

por alguma razão os fósforos se recusavam
nas noites de lua cheia.
e se insistia em acendê-los o vento levava-os à nascença
como pequenas folhas de ouro, moribundas
e dançantes

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