é nos rochedos que entra o mar
(água dura em pedra mole),
entra pelos olhos de mistura com o vento,
insidioso, vivo, cavitante,
entra na memória,
entra nas tardes secretas em que juntávamos
as mãos, a boca, tudo
Johann Heinrich Wilhelm Tischbein, Ulisses e Penélope (1802)
.
ODISSEIA
1.
REGRESSO DE ULISSES, O TOLO
minha velha, não esperasses tanto por mim.
trouxe do mar esta cegueira do sargaço
e o cancro da próstata,
trouxe as cinzas que as ninfas e as sereias
(e a aranha negra de Ogígia)
içaram em mim
viajei por quantas camas insulam o Mediterrâneo
e nem tu nem eu temos culpa ou salvação
Telémaco, tão criança é ele ainda e tão forte já
envelheceu o arco que me arremessa a pique
nestas escarpas de búteos e oliveiras escassas
lá em baixo é a espuma que me mata.
disse-te que quero morrer?
fica pois tecendo, rainha inútil!
é de escolhos que a vida se faz,
vinte anos de ardimento roem até ao osso
e depois mais nada, só a doença, só a ilha despida,
só a memória voando e voando até soçobrar
ou alguém fazer com ela uma epopeia,
e mentir, mentir, mentir
.
2.
DIRIGE-SE PENÉLOPE A ULISSES
na verdade, nem sei se te amo:
talvez te ame como às cabrinhas,
tão inofensivas primeiro e depois não.
talvez te deseje no mesmo ergástulo
desces a encosta com o teu antigo chocalho,
sinto-te aproximar
(agora humilde, antes não),
e eu acaricio-te o dorso,
conto os dias que faltam
(a minha vingança,
este lampejo indefinido de mulher que sou até às entranhas),
para te sorrir
e apunhalar no cachaço
a assim chamada vida,
– isto é, o eu, o nós, a existência periclitante dos seres que nascem,
agem, poisam um seu lugar no mundo –
tem tudo para falhar
a escassez de água, o excesso de temperatura, a luz inóspita,
mas também a chusma infindável de causas fortuitas,
o erro na fecundação, a doença congénita, o meteoro assassino,
mas também o acidente de comboio, a queda fatal da árvore,
o mergulho fora de horas na piscina,
mas também a boca do déspota beligerante, a marcha da soldadesca,
o gargalo dos canhões
mas também as pragas bíblicas, as carnificinas homéricas,
as células cancerígenas
mas igualmente o desaire do jovem Werther,
a assincronia fatal de Romeu e de Julieta,
o desgosto inquantificável de Anna Karénina
mas igualmente o espaço e o tempo,
a disposição do deus arbitrário das bênçãos e das misérias,
o deus das promessas ditosas e das falas funestas,
o deus-sincrético, o deus uno, o deus panteísta,
o deus-amor, o deus violento, o do silêncio
mas igualmente o antes, o logo depois e o durante
a assim chamada vida cambaleia, rasteja, suplica às vezes,
às vezes renasce inesperadamente, prolifera, fagocita,
suspende-se a si mesma,
devora-se a si própria,
apavora-se consigo a sós,
aniquila os fracos, exubera entre os absurdos,
transmite-se como uma carta em segredo no interior do castelo
a assim chamada vida
– ou seja, o ornitorrinco, os protozoários, as praias da Polinésia,
o adágio de Barber, os azuis de Klein, a beterraba,
a Estrela da Morte, as estrelas Michelin, a estrela da beladona –
é uma versão da lotaria,
um algarismo algures entre o vermelho e o negro
de todas as formas imensas da sorte ou do infortúnio
a assim chamada vida
– que prodígio, que milagre –
tem tudo para falhar
e, no entanto, triunfa, triunfou sempre, leitor!
paisagens tártaras,
montanhas, campónios, silêncio.
gemer de um velho arado anacrónico.
silêncio.
de quando em quando o altear das vozes,
bois, mulheres de lenço atado na cabeça, viúvas.
silêncio
•
as searas estendem-se até ao Cáucaso.
as mulheres estendem-se até ao Cáucaso.
a ceifa estende-se até ao Cáucaso
sufoca-se
água e pão até ao Cáucaso.
crianças e velhos deitados até ao Cáucaso.
cansados, ressonando, até ao Cáucaso
•
linguagem universal,
restos mortais de um Trabant na várzea,
córnea oxidada, trevo engolindo-o
devagar
(o verde vence sempre na política!)
•
muro de cimento. ou será de betão?
áspero, sujo, tisnado
a criança trouxe giz, trouxe sol,
gatafunhos, um modo seu de ser flor,
um pai distante, cacos
em forma de coração
•
no açafate, um frasco de mel, figos,
uvas, pão.
dedos carinhosos: como antigamente.
mas a lâmpada tantas vezes nos acorda.
nem sequer de vidro. acesa, sim.
de jejum
•
domingo.
coisas perfeitas, domesticadas, mansas.
almoço em família, pensamento longe, nos arredores da lógica.
ela veste calças de couro e botins de camurça.
os cabelos louros caem-lhe sobre os ombros, lisos como
linhas de água, independentes
domingo.
conversa-se sem pressa, conserva-se a harmonia.
o sorriso é de lei: um dobrão antigo.
sorrio, sorrimos: é domingo!
ela compreende, talvez compreenda,
oxalá compreendesse. pensamento longe,
em metades, como um frasco partido
•
cheiro de merda quente,
animais trotando devagar, entre
o seu destino e o seu destino
pegadas e fezes pesando
no meu chão: animal entre
animais, afundo
•
a chuva lava agora a posteridade,
o alcatrão e os telhados, persianas, quintais, contentores, goteiras,
chinelos esquecidos na varanda, focinhos de cães,
a vidraça esquálida no posto da polícia, tudo,
gasóleo, urina, restos de gelado, metades de pão,
frases em língua estrangeira, pensamentos tardios,
a vil melancolia do sul, tudo
um oleado amarelo mantém a ordem.
perfume de açucenas, detergente de hotel, limpeza.
a cabeça lavada, lavada, lavada!
fim de tarde, degraus musgosos, uma azenha
desmantelada, tufos de erva alta
crescidos sobre o rio, algas
nas águas límpidas, agriões, o azul
da buglossa, malmequeres amarelos, o branco
da hortelã-brava, o roxo dos ervilhais
e da lavanda
fim de tarde, degraus musgosos, silêncio
pairando na orla dos caminhos.
acocorado na terra húmida, como quem
se lava no verde, pulmões abertos para o esplendor
do funcho!
pensamento sem portas ou janelas.
como quem tivesse descido ao paraíso!
lia um poema de Tassos Denegris,
a terra era seca,
as oliveiras floridas mostravam
como se pode e como se deve.
o sol empunhava a mão
contra as pedras,
havia um aroma subtil
no pó.
as metáforas faiscavam em pouco
e calavam-se: enfarna era a palavra,
a palavra que me seduzia