Solstício

Jörg Peter
Fotografia de Jörg Peter

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SOLSTÍCIO

nesse ano o quinquilheiro não apareceu.
esperámos por ele como se espera um dia de sol,
como se aguarda uma notícia vinda de França,
como se adivinha uma ninhada de pintos por Santo António

mas nem sinal da furgoneta,
da buzina de fole,
das ferragens batendo umas nas outras

a minha mãe contava comprar-lhe, se não me engano, um alguidar de cobre.
via-o já polido e brilhante, arrubinado, como a cor de um arrebol
um pouco antes do dia e do anoitecer

o adro encheu-se de gente,
uns para trazer, outros para levar bugigangas,
mas o descarado não veio

a luz foi minguando, até que os que ali restavam mal se viam uns aos outros.
por fim também eles debandaram.
só um cachorro sem dono ficou,
aninhado sob os braços do grande damasqueiro do padre Francisco

o inverno entrou pelos portões do cemitério

mortas de desgosto, as ervas tombavam no intervalo das pedras.
a tremer, coberto pelas finas camadas do frio, abri a porta de casa

vadio como era, também eu aluía nas pernas

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Cinzas

Andreas Lischka - wood
Fotografia de Andreas Lischka

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CINZAS

para Amélia Pereira, minha avó

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o cheiro das cinzas é quase
tão indecifrável quanto
a efusão da tinta.
com elas escrevemos
não palavras, mas o silêncio,
não a manhã, mas memórias,
não o fim, mas um rosto –
também ele impossível
de dizer,
seja de que forma for

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Pelas frinchas da garagem

Antiga oficina. Antiga garagem.
Fotografia recolhida na plataforma Pixabay

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PELAS FRINCHAS DA GARAGEM

pelas frinchas da garagem
entram os dedos da lua

depois é um eco de velhas sucatas
adormecidas, cablagens e
candeeiros a petróleo, caixas de
sapatos e bonecos de caco,
coisas dispersas, despejadas pelo
tempo ao acaso através da pele

sem rasto é o cheiro do silêncio,
o rosto que nos pertencia
e hoje não passa de gelo talhado
a esmo, por entre as frestas
da memória

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Costa do Havre, Monet

Claude Monet, Jardim em Sainte-Adresse, 1867
Claude Monet, Jardim em Sainte-Adresse, 1867

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COSTA DO HAVRE, MONET

da sujidade das sombras e da inclemência do vazio,
também nós fugimos ao domingo
para esse terraço de Sainte-Adresse sobre
o mar

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A amendoeira de Van Gogh

Vincent van Gogh, Amendoeira em Flor (Almond Blossom), 1890
Vincent van Gogh, Amendoeira em Flor, 1890

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A AMENDOEIRA DE VAN GOGH

hoje ao entrar na amendoeira de van Gogh
calei todos os meus impulsos.
o vento era um tudo-nada mais forte,
o branco ardia no azul,
algures evaporava-me

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«Retrato de Louis-François Bertin, 1832», Ingres

Jean_auguste_dominique_ingres-monsieur_bertin
Jean-Auguste Dominique Ingres, Monsieur Louis-François Bertin, 1832

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«RETRATO DE LOUIS-FRANÇOIS BERTIN, 1832», INGRES

esmaga-nos o peso das mãos abertas,
como se à mistura de vidro, prata, alumínio e água
a voracidade do olhar
se acrescentasse

Paris, abril de 2011

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