Oração

Moollyem, pray, oração, deus, fé
Fotografia de Moollyem

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ORAÇÃO

de toda a perdição, dos males que envenenam a cabeça, do desamor raivoso, da metade álgida dos lençóis nas noites de dezembro, da sujidade da casa e mais do que ela da imundície do corpo, da volúpia do erro, da infensa admoestação dos puritanos, dos filhos que ignoram a verdade por vontade própria, da velhice que nos corre nas veias fermentadora e que um dia nos exporá à luz como toupeiras trôpegas, das palavras amaras dos que jamais amaram, da má fortuna dos que no mundo vi sempre passar graves tormentos, da tenebrosa inveja dos comem o nosso sal e escondem o nosso sol, de toda a perdição malsã dos sabotadores, biltres e mesquinhos

libera nos, domine

porque tu podes e nós queremos muito

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Solstício

Jörg Peter
Fotografia de Jörg Peter

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SOLSTÍCIO

nesse ano o quinquilheiro não apareceu.
esperámos por ele como se espera um dia de sol,
como se aguarda uma notícia vinda de França,
como se adivinha uma ninhada de pintos por Santo António

mas nem sinal da furgoneta,
da buzina de fole,
das ferragens batendo umas nas outras

a minha mãe contava comprar-lhe, se não me engano, um alguidar de cobre.
via-o já polido e brilhante, arrubinado, como a cor de um arrebol
um pouco antes do dia e do anoitecer

o adro encheu-se de gente,
uns para trazer, outros para levar bugigangas,
mas o descarado não veio

a luz foi minguando, até que os que ali restavam mal se viam uns aos outros.
por fim também eles debandaram.
só um cachorro sem dono ficou,
aninhado sob os braços do grande damasqueiro do padre Francisco

o inverno entrou pelos portões do cemitério

mortas de desgosto, as ervas tombavam no intervalo das pedras.
a tremer, coberto pelas finas camadas do frio, abri a porta de casa

vadio como era, também eu aluía nas pernas

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