
.
«A ASSIM CHAMADA VIDA» (CZESŁAW MIŁOSZ)
a assim chamada vida,
– isto é, o eu, o nós, a existência periclitante dos seres que nascem,
agem, poisam um seu lugar no mundo –
tem tudo para falhar
a escassez de água, o excesso de temperatura, a luz inóspita,
mas também a chusma infindável de causas fortuitas,
o erro na fecundação, a doença congénita, o meteoro assassino,
mas também o acidente de comboio, a queda fatal da árvore,
o mergulho fora de horas na piscina,
mas também a boca do déspota beligerante, a marcha da soldadesca,
o gargalo dos canhões
mas também as pragas bíblicas, as carnificinas homéricas,
as células cancerígenas
mas igualmente o desaire do jovem Werther,
a assincronia fatal de Romeu e de Julieta,
o desgosto inquantificável de Anna Karénina
mas igualmente o espaço e o tempo,
a disposição do deus arbitrário das bênçãos e das misérias,
o deus das promessas ditosas e das falas funestas,
o deus-sincrético, o deus uno, o deus panteísta,
o deus-amor, o deus violento, o do silêncio
mas igualmente o antes, o logo depois e o durante
a assim chamada vida cambaleia, rasteja, suplica às vezes,
às vezes renasce inesperadamente, prolifera, fagocita,
suspende-se a si mesma,
devora-se a si própria,
apavora-se consigo a sós,
aniquila os fracos, exubera entre os absurdos,
transmite-se como uma carta em segredo no interior do castelo
a assim chamada vida
– ou seja, o ornitorrinco, os protozoários, as praias da Polinésia,
o adágio de Barber, os azuis de Klein, a beterraba,
a Estrela da Morte, as estrelas Michelin, a estrela da beladona –
é uma versão da lotaria,
um algarismo algures entre o vermelho e o negro
de todas as formas imensas da sorte ou do infortúnio
a assim chamada vida
– que prodígio, que milagre –
tem tudo para falhar
e, no entanto, triunfa, triunfou sempre, leitor!
.

