atravesso as dunas, a lenta oscilação da cor, o vento,
o áspero rancor das areias, os rizomas secos,
atravesso a sombra inócua dos meus passos submersos,
o esquivo lugar que caldeia o sangue e me chama pelo nome,
atravesso formas de tinta, borrões, elegíacas borboletas
zarpando da cabeça em direção ao nada,
atravesso lunações, lucivelos, lágrimas que tudo subtraem à luz,
atravesso os fundos granitos da água como um barco,
atravesso a alta ruína que estremece com todo o medo
e sou dia e noite nos interstícios dos equinócios
e sou uma dor crescente,
atravesso o silêncio, a frívola armação em esqueleto das ideias,
atravesso-me como um inseto, como pó vazando as cavidades,
atravesso o sensível vazio que se antecipa ao varrer do vento,
as dunas, a máquina do silêncio, a dicotomia da morte,
atravesso o poema, a semântica, a cinza que dele em breve
há de restar no lugar do lume,
atravesso o meu próprio arrepio de me saber nada,
absolutamente nada, nem a memória de nada, nada, nada,
e depois calo, desofego, imobilizo-me,
sou um ponto amarfanhado no chão, depois nem isso,
depois, em última análise, nem a memória desse esquecimento
este é o lugar mais feio da cidade:
linhas de alta tensão, vagões esquálidos, travessas fedorentas
por onde saltitam os pincéis e as trinchas de creosoto,
nesgas de terra vermelha ao longo dos carris,
gente que esmaga beatas e as semeia entre tufos audazes
de cerefólio e de funcho
mas a noite, como os operários da manutenção, salva
este horror.
aos poucos os comboios intervalam-se mais,
o sossego faz esmorecer o rancor dos cigarros,
as primeiras luzes acordam nos lampiões anacrónicos
e a lua (inteiriça, dura) atira-se sobre o pontilhão de ferro
ela, chamei-lhe Laura – e não tenho ainda outro nome –
chega sempre tarde.
reconheço-lhe o som dos tacões no pavimento,
o sobressalto, o sobretudo vermelho que a ilumina na penumbra.
ultimamente hesita, caminha mais devagar, quase espero
que se volte de repente, afogueada, contra o meu olhar
imagino que Laura pressinta o mesmo que eu:
que as trevas transfiguram os lugares feios,
que as trevas tornam mais aceitáveis os fios confusos do telégrafo,
que a solidão dos edifícios encardidos e os carris sujos
nada importa se alguém nos olha, mesmo que à distância,
mesmo que recriminando em silêncio a nossa miserável vocação
a assim chamada vida,
– isto é, o eu, o nós, a existência periclitante dos seres que nascem,
agem, poisam um seu lugar no mundo –
tem tudo para falhar
a escassez de água, o excesso de temperatura, a luz inóspita,
mas também a chusma infindável de causas fortuitas,
o erro na fecundação, a doença congénita, o meteoro assassino,
mas também o acidente de comboio, a queda fatal da árvore,
o mergulho fora de horas na piscina,
mas também a boca do déspota beligerante, a marcha da soldadesca,
o gargalo dos canhões
mas também as pragas bíblicas, as carnificinas homéricas,
as células cancerígenas
mas igualmente o desaire do jovem Werther,
a assincronia fatal de Romeu e de Julieta,
o desgosto inquantificável de Anna Karénina
mas igualmente o espaço e o tempo,
a disposição do deus arbitrário das bênçãos e das misérias,
o deus das promessas ditosas e das falas funestas,
o deus-sincrético, o deus uno, o deus panteísta,
o deus-amor, o deus violento, o do silêncio
mas igualmente o antes, o logo depois e o durante
a assim chamada vida cambaleia, rasteja, suplica às vezes,
às vezes renasce inesperadamente, prolifera, fagocita,
suspende-se a si mesma,
devora-se a si própria,
apavora-se consigo a sós,
aniquila os fracos, exubera entre os absurdos,
transmite-se como uma carta em segredo no interior do castelo
a assim chamada vida
– ou seja, o ornitorrinco, os protozoários, as praias da Polinésia,
o adágio de Barber, os azuis de Klein, a beterraba,
a Estrela da Morte, as estrelas Michelin, a estrela da beladona –
é uma versão da lotaria,
um algarismo algures entre o vermelho e o negro
de todas as formas imensas da sorte ou do infortúnio
a assim chamada vida
– que prodígio, que milagre –
tem tudo para falhar
e, no entanto, triunfa, triunfou sempre, leitor!