As coisas silenciosas

Fotografia de Ani Subari

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AS COISAS SILENCIOSAS

(Lendo a História do Silêncio de Alain Corbin)

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esta manhã olhei as unhas,
o rigor com que a pele mascava o interior das palavras,
o desenho elegante da mobília, o livro, o caderno.
vi em mim o teu corpo desaparecido,
o secreto júbilo que te amparava na natureza das coisas silenciosas,
o arrumo dos pensamentos,
a delicadeza das sombras

nunca depois da tua morte me pareceste tão real

olhei as minhas mãos entre as flores secas do vaso,
na linha do aparador, no papel imaculado,
os meus dedos erguendo o pequeno suporte de vidro onde voltará
um círio a arder (agora e para sempre)
em louvor da Sagrada Família,
a minha pele contra o rumor das cortinas
que ferem de leve as paredes

as unhas derramam o vazio e tu vens:
tocares cada poema com ternura
é ainda – mãe minha e nossa – algo que me consola

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Do amor pelas nossas mãos

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Fotografia de Quino Al

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DO AMOR PELAS NOSSAS MÃOS

a cabeça encheu-se de vozes
(promessas, sentenças, declarações de amor),
mas a felicidade
é a curvatura das nossas mãos

elas agarram, escavam, procuram

uma palavra a mais, uma palavra a menos:
faltava-me escrever este poema

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A lenta desaparição de nós mesmos

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Fotografia de Ruth Wellman

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A LENTA DESAPARIÇÃO DE NÓS MESMOS

atravesso as dunas, a lenta oscilação da cor, o vento,
o áspero rancor das areias, os rizomas secos,
atravesso a sombra inócua dos meus passos submersos,
o esquivo lugar que caldeia o sangue e me chama pelo nome,
atravesso formas de tinta, borrões, elegíacas borboletas
zarpando da cabeça em direção ao nada,
atravesso lunações, lucivelos, lágrimas que tudo subtraem à luz,
atravesso os fundos granitos da água como um barco,
atravesso a alta ruína que estremece com todo o medo
e sou dia e noite nos interstícios dos equinócios
e sou uma dor crescente,
atravesso o silêncio, a frívola armação em esqueleto das ideias,
atravesso-me como um inseto, como pó vazando as cavidades,
atravesso o sensível vazio que se antecipa ao varrer do vento,
as dunas, a máquina do silêncio, a dicotomia da morte,
atravesso o poema, a semântica, a cinza que dele em breve
há de restar no lugar do lume,
atravesso o meu próprio arrepio de me saber nada,
absolutamente nada, nem a memória de nada, nada, nada,
e depois calo, desofego, imobilizo-me,
sou um ponto amarfanhado no chão, depois nem isso,
depois, em última análise, nem a memória desse esquecimento

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