o cheiro das cinzas é quase
tão indecifrável quanto
a efusão da tinta.
com elas escrevemos
não palavras, mas o silêncio,
não a manhã, mas memórias,
não o fim, mas um rosto –
também ele impossível
de dizer,
seja de que forma for
o que sobrou dalgum antigo império seguramo-lo
agora nas mãos: barro, água salgada,
resquícios de azeite ou de vinho, restos
de garum, fragmentos escassos dalguma
essência rara
a nós o enviaram os velhos deuses
preteridos, a nós o enviaram como
se envia para longe, a alguém, uma derradeira
mensagem antes da
capitulação
asseguremo-nos, por isso, de que o tempo
faz justiça, de que a palavra soterrada
pelo silêncio e pelas marés permanecerá
íntegra e preciosa, límpida
e viva
perguntaram a Ludwig Wittgenstein se aquele era um dia concreto
o que é um dia concreto? o que é a porra de um dia concreto?
nunca soube a resposta que deu o dinamarquês
um dia concreto. concreto como um campo de cizânia ou de cicuta à nossa frente. concreto como Tōru Takemitsu em Nostalghia. concreto como o cheiro da serralha ou de uma cebola ou do chewing gum na tua boca. concreto como um copo de água sobre a mesa
um dia concreto como estar acordado diante de um grande relógio de parede. como olhar nos olhos os olhos que nos olham ao espelho
um dia concreto como sentir ardor na bexiga. como ter uma pedra a rolar entre os dedos
um dia concreto como tossir sem blandícia por causa do pó. como escrever numa folha interminável a sequência de Fibonacci. como apalpar um traseiro. como sentir o estrugido a queimar
um dia passado entre o frio mistral do vento e o abrasador da luz. um dia concreto. a escutar grilos ou a limpar ramelas. concreto como fazer uma salada com escarolas ou rúcula ou alface. como ler de pé Bernardo Atxaga ou Philip Levine. ou fumar uma imitação barata de um Cohiba. como vilipendiar alguém ao telefone por causa do condomínio
um dia concreto. concreto como todos os dias concretos, cheios de pressa e de vagar, mãos nos bolsos, nas luvas, na pele, prontas a segurar o caderno e a estropiar mais um poema
um dia concreto como amar as Quatro Estações de Vivaldi e não ter mais que dizer. concreto como ter a barba crescida e nenhuma lâmina ou sabão em casa, nem vontade para escanhoar o atordoado rosto, quase de novo infantil. concreto como a autocomiseração. como ouvir na rádio a Quarta de Brahms conduzida por Bernstein. concreto como uma maçã, ao contrário, obclávea, tonta. como o gemido súcubo dentro da faca que a corta em dois e em quatro. concreto como levar um murro ou um par de cornos e andar semanas, magoadamente, a cair sobre os ossos. concreto como sacos de lona às costas de um farrapeiro. como o fedor de um animal em decomposição sobre o asfalto. concreto como o reflexo da chuva e o peso de um beijo sobre as faces
voltemos, portanto, ao começo: perguntaram a Wittgenstein, creio que foi Russell quem o fez, enquanto alambazava o cachimbo
o que é para si um dia concreto?
um indagava no putativo hipopótamo escondido entre os móveis da sala. o outro meditava em matéria e antimatéria, na carta que haveria de escrever a Niels Bohr
o que é para si um dia concreto?
era uma conversa fiada, de filósofos. a nenhuma conclusão chegaram, como é fácil, aliás, de suspeitar
Fotografia de Rudy and Peter Skitterians (Pixabay)
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ENTRE A PRIMAVERA E O VERÃO
os meus sobrinhos são o mais parecido que tenho
com a minha infância
gosto deste tempo,
do perfume venturoso das ervas frescas,
do modo como as manhãs nos ressuscitam das noites insones
e do torpor.
gosto deste sol que rutila numa parte da montanha
e torna mais vívidos os lugares da água,
da vermelhidão dos cravos,
dos olhos dos pássaros,
de tudo
os meus sobrinhos brincam no pátio, alteiam a voz,
imitam a imensidão dos gatos
pedem-me às vezes uma história,
pedem que lhes faça pendular o baloiço,
que inculque no seu tempo um lugar novo, indecifrável
entre a primavera e o verão – é aí que encontro
o meu próprio eu,
a minha secreta preferência pelas coisas,
a minha plenitude
a água corre ao tanque
e os pardais lavam o ar com o seu labor incessante.
olho as cerejas e os morangos entre as folhas
e os meus sobrinhos sorriem comigo
é aí, algures no quintal – é aí
que encontro esse bem que tão bem conheço
e de que tão pouco (ainda hoje) posso ou sei dizer
a infância é a melhor definição do amor
afortunado quem assim a descortina,
cismando nas crianças que brincam
sem ideia da luz
que ao redor de si e dos outros fazem transbordar
absolutamente álacre e limpa
dificilmente se ignora um gesto de ternura,
um vestido vaporoso correndo
entre ângulos de luz solar ao cair do dia,
ou os cabelos loiros que esvoaçam entre linhas
intermináveis de alfazema florida
dificilmente se esquece o perfume
que em junho ou julho de um ano antigo,
numa aldeia qualquer nos arredores da Provença,
nos prende à substância do amor,
que é como se sabe o oposto da morte
dificilmente se perdoa a nós mesmos
o quilate de uma lembrança assim,
o corpo (leve de anos) correndo atrás daquela
que no campo, envolta em luz, nos foge
rindo, triunfante, para o lado da memória
dificilmente pode alguém imitar o poema
perfeito, ainda que guardando no bolso
alguns restos desse sol, algumas migalhas
dessa brisa, alguns pedaços desse riso,
algumas sobras desse amor com que o escrevias