Um cigarro

Fotografia de Enes Dincer

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UM CIGARRO

era preciso que falássemos,
que abríssemos entre nós
o conforto das manhãs desassombrosas
e o cheiro do mar posto
no aroma do café
ou num cigarro

não precisávamos de palavras,
precisávamos de comunicar

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Lavra, Matosinhos

ddzphotos
Fotografia de ddz_photo

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LAVRA, MATOSINHOS

regressámos hoje a este lugar pelágico
onde as runas e os líquenes vermelhos cobrem os rochedos,
onde a antiga voz de deus corre às dunas e ao sol
para reencontrar-se com o brilho frágil
das gramíneas

depois que partiste
todo o espaço pareceu encarquilhado e rude.
a miséria da dor afundou-nos os olhos
e silenciou as palavras

porém este lugar acicata.
como um sopro lançado às brasas, faz-nos caminhar
horas infinitas pelos corredores do vento
e com o mar em fundo

voltamos por isso a nós,
renascentes parturidos do âmago do fogo, aos poucos,
de outro tempo, noutro corpo

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Janeiro

cais no inverno (Janeiro)
Fotografia de Maxime Barrell

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JANEIRO

manhã de sábado.
acordamos devagar na viração fria,
no cheiro forte que o mar traz em salpicos
e que as gaivotas elevam sobre
o paredão

o vento faz drapejar as bandeiras no cais,
atira-nos contra a luz,
esmaga-nos como espuma

recebo-te nos meus braços.
porém és tu quem me abriga

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O mar

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Fotografia de Seamus Rilley

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O MAR

é nos rochedos que entra o mar
(água dura em pedra mole),
entra pelos olhos de mistura com o vento,
insidioso, vivo, cavitante,
entra na memória,
entra nas tardes secretas em que juntávamos
as mãos, a boca, tudo

entra e sai, cheio de espuma,
cheio de nada

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