A Solidão, segundo Paul Malvaux

Paul Delvaux, Loneliness, 1956
Paul Delvaux, Loneliness, 1956

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A SOLIDÃO, SEGUNDO PAUL DELVAUX

este é o lugar mais feio da cidade:
linhas de alta tensão, vagões esquálidos, travessas fedorentas
por onde saltitam os pincéis e as trinchas de creosoto,
nesgas de terra vermelha ao longo dos carris,
gente que esmaga beatas e as semeia entre tufos audazes
de cerefólio e de funcho

mas a noite, como os operários da manutenção, salva
este horror.
aos poucos os comboios intervalam-se mais,
o sossego faz esmorecer o rancor dos cigarros,
as primeiras luzes acordam nos lampiões anacrónicos
e a lua (inteiriça, dura) atira-se sobre o pontilhão de ferro

ela, chamei-lhe Laura – e não tenho ainda outro nome –
chega sempre tarde.
reconheço-lhe o som dos tacões no pavimento,
o sobressalto, o sobretudo vermelho que a ilumina na penumbra.
ultimamente hesita, caminha mais devagar, quase espero
que se volte de repente, afogueada, contra o meu olhar

imagino que Laura pressinta o mesmo que eu:
que as trevas transfiguram os lugares feios,
que as trevas tornam mais aceitáveis os fios confusos do telégrafo,
que a solidão dos edifícios encardidos e os carris sujos
nada importa se alguém nos olha, mesmo que à distância,
mesmo que recriminando em silêncio a nossa miserável vocação

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A noite

Noite, galáxia, cizânia
Fotografia de Guille Pozzi

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A NOITE

deixamos a lâmpada para trás.
uma cancela separa-nos da noite,
dos arbustos negros que entortam na extremidade

Ziro desencantou um maço de cigarros.
os fósforos tremem um pouco,
depois a fumaça sobe pela galáxia

é tão bom viver como nos der na real gana
diz ele

cheira a ervas secas e a bosta fresca

debaixo dos nossos pés, a terra em gelo
geme como os ossos dos velhos

faz-se tarde.
é melhor trincarmos peneiras de funcho,
esfregarmos as mãos com hortelã
digo eu.
é assim que um tipo se faz adulto,
dá trabalho

quanto à noite, que dizer
senão que nos parece um reino incompreensível?

sabe tão bem mijar sem medo de nada
digo eu.
Ziro acena com a cabeça: tão bem
diz ele

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Tempo certo

astronomy-1868065_1920
Fotografia de Martin Zalba

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TEMPO CERTO

nem depressa nem devagar, mas no tempo certo,
na cauda do cometa, durante o gole de café,
enquanto se adormece uma criança

e tudo deveria durar assim, como uma infância,
a sarabanda de Bach, o beijo, um poema

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