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ORPHEU, SOBRE EURÍDICE
não é a morte a que tu receias,
mas a luz,
a lâmpada que te consome a nervura do olhar
e branca te anoitece,
como o pavor dos cegos
e dos ofuscados
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ODISSEIA
1.
REGRESSO DE ULISSES, O TOLO
minha velha, não esperasses tanto por mim.
trouxe do mar esta cegueira do sargaço
e o cancro da próstata,
trouxe as cinzas que as ninfas e as sereias
(e a aranha negra de Ogígia)
içaram em mim
viajei por quantas camas insulam o Mediterrâneo
e nem tu nem eu temos culpa ou salvação
Telémaco, tão criança é ele ainda e tão forte já
envelheceu o arco que me arremessa a pique
nestas escarpas de búteos e oliveiras escassas
lá em baixo é a espuma que me mata.
disse-te que quero morrer?
fica pois tecendo, rainha inútil!
é de escolhos que a vida se faz,
vinte anos de ardimento roem até ao osso
e depois mais nada, só a doença, só a ilha despida,
só a memória voando e voando até soçobrar
ou alguém fazer com ela uma epopeia,
e mentir, mentir, mentir
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2.
DIRIGE-SE PENÉLOPE A ULISSES
na verdade, nem sei se te amo:
talvez te ame como às cabrinhas,
tão inofensivas primeiro e depois não.
talvez te deseje no mesmo ergástulo
desces a encosta com o teu antigo chocalho,
sinto-te aproximar
(agora humilde, antes não),
e eu acaricio-te o dorso,
conto os dias que faltam
(a minha vingança,
este lampejo indefinido de mulher que sou até às entranhas),
para te sorrir
e apunhalar no cachaço
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«A ASSIM CHAMADA VIDA» (CZESŁAW MIŁOSZ)
a assim chamada vida,
– isto é, o eu, o nós, a existência periclitante dos seres que nascem,
agem, poisam um seu lugar no mundo –
tem tudo para falhar
a escassez de água, o excesso de temperatura, a luz inóspita,
mas também a chusma infindável de causas fortuitas,
o erro na fecundação, a doença congénita, o meteoro assassino,
mas também o acidente de comboio, a queda fatal da árvore,
o mergulho fora de horas na piscina,
mas também a boca do déspota beligerante, a marcha da soldadesca,
o gargalo dos canhões
mas também as pragas bíblicas, as carnificinas homéricas,
as células cancerígenas
mas igualmente o desaire do jovem Werther,
a assincronia fatal de Romeu e de Julieta,
o desgosto inquantificável de Anna Karénina
mas igualmente o espaço e o tempo,
a disposição do deus arbitrário das bênçãos e das misérias,
o deus das promessas ditosas e das falas funestas,
o deus-sincrético, o deus uno, o deus panteísta,
o deus-amor, o deus violento, o do silêncio
mas igualmente o antes, o logo depois e o durante
a assim chamada vida cambaleia, rasteja, suplica às vezes,
às vezes renasce inesperadamente, prolifera, fagocita,
suspende-se a si mesma,
devora-se a si própria,
apavora-se consigo a sós,
aniquila os fracos, exubera entre os absurdos,
transmite-se como uma carta em segredo no interior do castelo
a assim chamada vida
– ou seja, o ornitorrinco, os protozoários, as praias da Polinésia,
o adágio de Barber, os azuis de Klein, a beterraba,
a Estrela da Morte, as estrelas Michelin, a estrela da beladona –
é uma versão da lotaria,
um algarismo algures entre o vermelho e o negro
de todas as formas imensas da sorte ou do infortúnio
a assim chamada vida
– que prodígio, que milagre –
tem tudo para falhar
e, no entanto, triunfa, triunfou sempre, leitor!
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PAISAGENS TÁRTARAS
paisagens tártaras,
montanhas, campónios, silêncio.
gemer de um velho arado anacrónico.
silêncio.
de quando em quando o altear das vozes,
bois, mulheres de lenço atado na cabeça, viúvas.
silêncio
•
as searas estendem-se até ao Cáucaso.
as mulheres estendem-se até ao Cáucaso.
a ceifa estende-se até ao Cáucaso
sufoca-se
água e pão até ao Cáucaso.
crianças e velhos deitados até ao Cáucaso.
cansados, ressonando, até ao Cáucaso
•
linguagem universal,
restos mortais de um Trabant na várzea,
córnea oxidada, trevo engolindo-o
devagar
(o verde vence sempre na política!)
•
muro de cimento. ou será de betão?
áspero, sujo, tisnado
a criança trouxe giz, trouxe sol,
gatafunhos, um modo seu de ser flor,
um pai distante, cacos
em forma de coração
•
no açafate, um frasco de mel, figos,
uvas, pão.
dedos carinhosos: como antigamente.
mas a lâmpada tantas vezes nos acorda.
nem sequer de vidro. acesa, sim.
de jejum
•
domingo.
coisas perfeitas, domesticadas, mansas.
almoço em família, pensamento longe, nos arredores da lógica.
ela veste calças de couro e botins de camurça.
os cabelos louros caem-lhe sobre os ombros, lisos como
linhas de água, independentes
domingo.
conversa-se sem pressa, conserva-se a harmonia.
o sorriso é de lei: um dobrão antigo.
sorrio, sorrimos: é domingo!
ela compreende, talvez compreenda,
oxalá compreendesse. pensamento longe,
em metades, como um frasco partido
•
cheiro de merda quente,
animais trotando devagar, entre
o seu destino e o seu destino
pegadas e fezes pesando
no meu chão: animal entre
animais, afundo
•
a chuva lava agora a posteridade,
o alcatrão e os telhados, persianas, quintais, contentores, goteiras,
chinelos esquecidos na varanda, focinhos de cães,
a vidraça esquálida no posto da polícia, tudo,
gasóleo, urina, restos de gelado, metades de pão,
frases em língua estrangeira, pensamentos tardios,
a vil melancolia do sul, tudo
um oleado amarelo mantém a ordem.
perfume de açucenas, detergente de hotel, limpeza.
a cabeça lavada, lavada, lavada!
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FUNCHO
fim de tarde, degraus musgosos, uma azenha
desmantelada, tufos de erva alta
crescidos sobre o rio, algas
nas águas límpidas, agriões, o azul
da buglossa, malmequeres amarelos, o branco
da hortelã-brava, o roxo dos ervilhais
e da lavanda
fim de tarde, degraus musgosos, silêncio
pairando na orla dos caminhos.
acocorado na terra húmida, como quem
se lava no verde, pulmões abertos para o esplendor
do funcho!
pensamento sem portas ou janelas.
como quem tivesse descido ao paraíso!
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ENFARNA
lia um poema de Tassos Denegris,
a terra era seca,
as oliveiras floridas mostravam
como se pode e como se deve.
o sol empunhava a mão
contra as pedras,
havia um aroma subtil
no pó.
as metáforas faiscavam em pouco
e calavam-se:
enfarna era a palavra,
a palavra que me seduzia
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AS GINGKO BILOBAS DE HIROSHIMA
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depois do terror foi preciso limpar a cidade.
os funcionários imperiais vinham em turnos,
metiam as pás nos restos polvorentos da pedra,
varriam a lama de um lado para o outro,
ouviam o vento ganir nas cinzas – o pior de tudo era
este assobio do silêncio, esse guinchar do ferro nas aérolas sem vidro,
nos escombros das pontes que dançavam como dobradiças,
nas cabeças que morriam mais devagar do que os outros órgãos
os funcionários do império iam
e vinham em turnos
às vezes retiravam e apertavam o barrete cheios de comoção,
guardavam em pequenos sarcófagos de cedro
os esqueletos não inteiramente consumidos pelo grande lume
foi preciso – foi preciso – reaprender
o mapa do pensamento:
ali era o zoológico, acolá a escola primária,
aquilo – aquela sombra calcinada no pavimento – uma mulher
com o filho ao colo
às vezes caía-se de joelhos no lugar exato
que havia sido o esconderijo puramente intacto de um rito,
de um beijo, de uma despedida
nunca as palavras se pareceram tão poucas no entulho,
nem tão amargas,
nem tão dementadas
meses a fio repetiu-se o desmantelar, o esquecer,
o prosseguir – o pior de tudo era
o caroço da morte,
o modo como escancarava ela a garganta
e permanecia
Ichiro Kawamoto, a quem Philip Levine dedicou
um poema portentoso, afirmava que na primavera de 46 aconteceu
um milagre:
aí por meados de março, algum verde soltou a língua
na paisagem infernal
– olhávamos e víamos brotos sair dos ramos espedaçados
das gingko bilobas,
renasciam pequenas pontas impregnadas de seiva
e isto – pensavam os funcionários do imperador –,
isto – pensamos nós – isto queria dizer alguma coisa
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