Impressões de outono

Outono . Autumn . Otoño
Fotografia de Janek Sedlar

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IMPRESSÕES DE OUTONO

a tarde bate em retirada ao longo da várzea. no seu lugar, escondido no bosque e nas primeiras trevas – sorrateiro como as fundações de um moinho – o som velho das gralhas. musgo e fungos trepam desde as folhas secas, carvalhos leprosos abrem longos dedos decrépitos até aos derradeiros fiapos de luz que vazam a copa engastalhada e descem à linha reta composta por todos os troncos. em breve por aqui passarão as sombras. o frio pole as pedras, pole os perfumes, pole o leito tranquilo sob as águas do ribeiro. a paisagem impõe respeito. íntima do silêncio, ela escreve devagar o seu próprio epitáfio. cada passada no estreito caminho de terra é um convite ao futuro: as botas gravam no lamaçal a nossa biografia. cada vez mais próximos da terra, os ossos pesam sob a arquitrave do pensamento, como obsidianas, as gralhas rasgam de alto a baixo o instante, mostram a clareira do abandono. quem aqui chega há de regressar a lado nenhum. como num sonho, o caminho é sempre em frente até perder-se, até que num lampejo de lucidez alguém nos sacuda e salve de nós mesmos

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Uma ânfora deu à costa

Gilles Quesnot - The amphora of a God
Fotografia de Gilles Quesnot

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UMA ÂNFORA DEU À COSTA

o que sobrou dalgum antigo império seguramo-lo
agora nas mãos: barro, água salgada,
resquícios de azeite ou de vinho, restos
de garum, fragmentos escassos dalguma
essência rara

a nós o enviaram os velhos deuses
preteridos, a nós o enviaram como
se envia para longe, a alguém, uma derradeira
mensagem antes da
capitulação

asseguremo-nos, por isso, de que o tempo
faz justiça, de que a palavra soterrada
pelo silêncio e pelas marés permanecerá
íntegra e preciosa, límpida
e viva

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Contempla-nos a flor

dae jeung kim
Fotografia de dae jeung kim

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CONTEMPLA-NOS A FLOR

às vezes, no meio de um silvado,
ofuscada pela trança verde dos espinhos,
aturdida pelas sombras,
contempla-nos a flor

e eu penso
este é o prodígio dos frágeis
e esquecidos –
durar, sobreviver, existir

nunca,
nunca poesia foi outra coisa

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Milagre

Saskia Dingemans
Fotografia de Saskia Dingemans

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MILAGRE

venho aqui com o Nilo muitas vezes, nenhuma igual a todas as outras, sempre à espera que a hora do dia em que vimos traga algum milagre, qualquer coisa que se assemelhe à poesia: pode ser o movimento da lua por entre os ramos dos choupos, o som corrente da água até ao açude e depois dele, o frio súbito que se sente ao atravessarmos a pequena ponte de pedra, a alegria estonteante dos pássaros um pouco antes de cair a noite – melros, pardais, estorninhos, pintassilgos, escrevedeiras, todos juntos, cada qual com o seu particular chilreio, dentro dos velhos muros do passal – eu e o cão, pisando a terra mole que a chuva recentemente empapou, à espera do milagre da poesia que nunca fica por achar

esta é uma transumância pelo tempo. nunca sei em que época da minha vida viajo, nem em que sonhos hei de tropeçar, ou em que versos de alguém aconchegar-me. entramos agora num quelho musgoso, num caminho antiquíssimo – já o era na minha infância – ladeado de altas fileiras de rebos pontiagudos até aos degraus de acesso a uma casa agora em silêncio, outrora vivida e habitada, em cuja eira branquejam ainda as lajes sob o halo do luar, em cujo quintal dão fruto ainda as figueiras e as cerejeiras e abrunheiros repetem a sua flor maravilhosamente alva e delicada, em cujos taludes se iluminam ainda as calêndulas e margaridas-do-campo, a saxífraga, os botões-de-ouro brancos, as quelidónias, a morugem, os olhos-de-gato, os lírios brancos e roxos, os pampilhos, os malmequeres comuns, às tantas as rosas bravas, antes delas os cachos poderosos e perfumados das glicínias

a terra enche-se destas presenças todos os anos, aconteça o que acontecer no mundo, indiferentes à humanidade e ao canídeo truculento, que de vez em quando as mata com urina de macho dominante. e nesta persistência encontro eu o otimismo: nem tudo é mau ou péssimo, há ainda o meu paraíso – pequeno é certo, sazonal é verdade, mas outro virá e eu virei com o Nilo todos os dias ao anoitecer, cansado do mundo e à espera que os pés me ajudem a lembrar quem sou, quem fui, e que um poema chegue ao fim honesto e limpo como esta terra em que nasceu

não peço mais.

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Mirador del Río (Lanzarote)

Fotografia de arquivo pessoal (2018)

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MIRADOR DEL RÍO (LANZAROTE)

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para a Catarina

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entre as escarpas e os talhões de terra vulcânica, há uma estrada limpíssima a perder de vista, bordejada por um muro contínuo – não muito alto, perfeitamente geométrico – de pedra basáltica. de um lado, em baixo, o oceano com a mansuetude da ilha Graciosa. do outro lado, a terra ocre e os retângulos frisados deste chão de grânulos negros onde os nossos sapatos caminham com dificuldade. ao fundo, a encosta imponente do La Corona. são sete da tarde. o nevoeiro sobe rapidamente do mar, galgando os píncaros e atravessando à nossa frente a estrada de que falo. ocultado e desocultado pelo vapor, o sol deixa tudo a contraluz: e é a beleza das imagens assim nascidas da neblina, a silhueta depurada dos nossos corpos, a distância tão breve do abismo, o som das vozes que aparecem e desaparecem – que se desvanecem ao longo da estrada – é esse instante antes do crepúsculo, acima das origens, tudo o que nos fica

Caleta de Famara, 24 de agosto de 2018

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Um dia concreto

Kari Shea - couch
Fotografia de Kari Shea

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UM DIA CONCRETO.

perguntaram a Ludwig Wittgenstein se aquele era um dia concreto

o que é um dia concreto?
o que é a porra de um dia concreto?

nunca soube a resposta que deu o austro-inglês

um dia concreto.
concreto como um campo de cizânia ou de cicuta à nossa frente.
concreto como Tōru Takemitsu em Nostalghia.
concreto como o cheiro da serralha ou de uma cebola ou do chewing gum na tua boca.
concreto como um copo de água sobre a mesa

um dia concreto como estar acordado diante de um grande relógio de parede.
como olhar nos olhos os olhos que nos olham ao espelho

um dia concreto como sentir ardor na bexiga.
como ter uma pedra a rolar entre os dedos

um dia concreto como tossir sem blandícia por causa do pó.
como escrever numa folha interminável a sequência de Fibonacci.
como apalpar um traseiro.
como sentir o estrugido a queimar

um dia passado entre o frio mistral do vento e o abrasador da luz.
um dia concreto.
a escutar grilos ou a limpar ramelas.
concreto como fazer uma salada com escarolas ou rúcula ou alface.
como ler de pé Bernardo Atxaga ou Philip Levine.
ou fumar uma imitação barata de um Cohiba.
como vilipendiar alguém ao telefone por causa do condomínio

um dia concreto.
concreto como todos os dias concretos, cheios de pressa e de vagar,
mãos nos bolsos, nas luvas, na pele,
prontas a segurar o caderno e a estropiar mais um poema

um dia concreto como amar as Quatro Estações de Vivaldi
e não ter mais que dizer.
concreto como ter a barba crescida e nenhuma lâmina ou sabão em casa,
nem vontade para escanhoar o atordoado rosto, quase de novo infantil.
concreto como a autocomiseração.
como ouvir na rádio a Quarta de Brahms conduzida por Bernstein.
concreto como uma maçã, ao contrário, obclávea, tonta.
como o gemido súcubo dentro da faca que a corta em dois e em quatro.
concreto como levar um murro ou um par de cornos
e andar semanas, magoadamente, a cair sobre os ossos.
concreto como sacos de lona às costas de um farrapeiro.
como o fedor de um animal em decomposição sobre o asfalto.
concreto como o reflexo da chuva e o peso de um beijo sobre as faces

voltemos, portanto, ao começo:
perguntaram a Wittgenstein, creio que foi Russell quem o fez,
enquanto alambazava o cachimbo

o que é para si um dia concreto?

um indagava no putativo hipopótamo escondido entre os móveis da sala.
o outro meditava em matéria e antimatéria, na carta que haveria de escrever
a Niels Bohr

o que é para si um dia concreto?

era uma conversa fiada, de filósofos.
a nenhuma conclusão chegaram, como é fácil, aliás, de suspeitar

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