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NIHIL
a casa em repouso absoluto, alicerces,
paredes, placas de betão
manhã, tarde, noite, o futuro, o presente, o passado,
rasto de cinza o tempo, de pé, ao alto, ainda,
como se um escombro pudesse ser belo
e é!
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RUA DE DELFT
algo de quase inocente ergue-se
nos tijolos de Delft e abre o olhar: sabemos
que deus se demora no vento, nas portadas em direção
aos pátios, nas cores quentes que acordam
os impercetíveis movimentos da casa
algo nos traz aqui, tu dirás
o sossego, as linhas seguras de Vermeer, a luz
humilde que tropeça na rua a esmo, acidental,
e eu direi o tempo ainda não perdido, o tempo intacto
de uma novíssima oração
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JURÁMOS
jurámos cuidar de ti a despeito de toda a peçonha,
de toda a inoculação, a despeito de toda a maleza
multiplicada no sangue
jurámos que por uma vez na vida
tomaríamos no corpo o sacrifício de Eneias,
abdicando da pronta bastardia dos luxos
por amor a ti,
princípio de todos os princípios
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AS COISAS SILENCIOSAS
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esta manhã olhei as unhas,
o rigor com que a pele mascava o interior das palavras,
o desenho elegante da mobília, o livro, o caderno.
vi em mim o teu corpo desaparecido,
o secreto júbilo que te amparava na natureza das coisas silenciosas,
o arrumo dos pensamentos,
a delicadeza das sombras
nunca depois da tua morte me pareceste tão real
olhei as minhas mãos entre as flores secas do vaso,
na linha do aparador, no papel imaculado,
os meus dedos erguendo o pequeno suporte de vidro onde voltará
um círio a arder (agora e para sempre)
em louvor da Sagrada Família,
a minha pele contra o rumor das cortinas
que ferem de leve as paredes
as unhas derramam o vazio e tu vens:
tocares cada poema com ternura
é ainda – mãe minha e nossa – algo que me consola
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PEQUENO ELOGIO AOS LIMÕES
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sopeso-os na mão, acaricio-lhes a pele enrugada,
o pó-verdete repousando entre as volutas do seu
dorso.
depois na fruteira eles são invariavelmente o sol, luz
que a casa acalenta com prazer
a faca que os corta pela metade enche-se do seu sangue
translúcido e perfumado – e amargo –
e as narinas ventilam a sua presença vívida
e pujante
nenhum alimento desdenha o segregar humilde
deste citrino, como não o faz a memória
à voz de velhos mestres que se tiveram, e que outrora
nos impunham a decência inquebrável
da caneta sobre o caderno
diria que o sangue dos limões é cândido
e talvez um pouco triste,
mas jamais inócuo – jamais indiferente
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JANEIRO, MEMÓRIAS
sobe às vezes de dentro de nós, como por eclusas, a visão esquecida da mesma paisagem. e então o moinho roda, os mortos voltam, o velho passal enche-se de fragrâncias verdes, brotos, frutos. no mesmo lugar onde os herdeiros disputam hoje redes altas de arame o sol perpassa, há vozes, paz, crianças a correr, leves pássaros saltitando, paz
como nas iluminuras antigas vê-se tudo, tudo
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SOLSTÍCIO
nesse ano o quinquilheiro não apareceu.
esperámos por ele como se espera um dia de sol,
como se aguarda uma notícia vinda de França,
como se adivinha uma ninhada de pintos por Santo António
mas nem sinal da furgoneta,
da buzina de fole,
das ferragens batendo umas nas outras
a minha mãe contava comprar-lhe, se não me engano, um alguidar de cobre.
via-o já polido e brilhante, arrubinado, como a cor de um arrebol
um pouco antes do dia e do anoitecer
o adro encheu-se de gente,
uns para trazer, outros para levar bugigangas,
mas o descarado não veio
a luz foi minguando, até que os que ali restavam mal se viam uns aos outros.
por fim também eles debandaram.
só um cachorro sem dono ficou,
aninhado sob os braços do grande damasqueiro do padre Francisco
o inverno entrou pelos portões do cemitério
mortas de desgosto, as ervas tombavam no intervalo das pedras.
a tremer, coberto pelas finas camadas do frio, abri a porta de casa
vadio como era, também eu aluía nas pernas
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