depois é um eco de velhas sucatas
adormecidas, cablagens e
candeeiros a petróleo, caixas de
sapatos e bonecos de caco,
coisas dispersas, despejadas pelo
tempo ao acaso através da pele
sem rasto é o cheiro do silêncio,
o rosto que nos pertencia
e hoje não passa de gelo talhado
a esmo, por entre as frestas
da memória
também o diabo visita às vezes
este solo vetusto
a chocalhar com alarido
no corpo dos homens,
atrás do paraíso
(que podia muito bem ser o Azibo,
ali tão perto),
mas que é afinal o desenho subtil
das mulheres,
a quem se pede o engenho
da água sobre o fogo,
ou (quem sabe, porque não?)
do lume sobre a lava
em lugar nenhum me pareceu Miranda tão bela como na loja dos frutos secos
mergulhas as mãos no gigo das nozes ou das amêndoas e sentes a volúpia dos círculos (a forma arredondada dos seixos enxutos) e sentes o pó de ouro que ergue o vento no interior do castelo desmantelado e que se torna ele próprio aceitável e parte da paisagem
se almoçares num dos restaurantes típicos, hás de pedir a posta de carne generosa (com alhos e batatas a murro), se hás de petiscar, pedirás doce de figo e roscos, se beberes, hás de sulcar as arribas íngremes que entalam o fio verde do rio, hás de caminhar pelas ruas em duas línguas, hás de respirar o aroma de cravinas que desce dos varandins e queimar o rosto na praça da Catedral
aí entrarás para rezar, aí em silêncio mergulharás as mãos e em silêncio as hás de retirar
nessa lojinha amei o outrora como se ama uma frase sem excesso ou a luz perfeita de uma memória
as mãos tocam a antiguidade e a juventude da terra. não há outro lugar assim em Miranda, não há
nos dias de chuva nada há a separar as muralhas das nuvens, mas nos dias de sol o granito renasce na paisagem ao redor e abre a sua pele dura às mãos que o queiram tocar. aqui onde o país se esqueceu de Portugal nem a bandeira flutua, só os mortos, só o silêncio que o vento tomba entre castanheiros e ressequidas ervas ralas que são como línguas exaustas no meio das pedras. do alto avista-se a soledade, e pomares de maçãs, e montanhas cansadas. um arco desperta-nos o olhar, o da porta da traição: por ela tudo se foi, até os crentes desta igreja medieval para onde a tarde escorre em pó, trazendo não sei que triste piedade