O mar

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Fotografia de Seamus Rilley

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O MAR

é nos rochedos que entra o mar
(água dura em pedra mole),
entra pelos olhos de mistura com o vento,
insidioso, vivo, cavitante,
entra na memória,
entra nas tardes secretas em que juntávamos
as mãos, a boca, tudo

entra e sai, cheio de espuma,
cheio de nada

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Orpheu sobre Eurídice

Jean Delville, A Morte de Orfeu, 1893
Jean Delville, A Morte de Orfeu, 1893

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ORPHEU, SOBRE EURÍDICE

não é a morte a que tu receias,
mas a luz,
a lâmpada que te consome a nervura do olhar
e branca te anoitece,
como o pavor dos cegos
e dos ofuscados

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Odisseia

Johann Heinrich Wilhelm Tischbein, Ulisses e Penélope (1802)
Johann Heinrich Wilhelm Tischbein, Ulisses e Penélope (1802)

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ODISSEIA

1.
REGRESSO DE ULISSES, O TOLO

minha velha, não esperasses tanto por mim.
trouxe do mar esta cegueira do sargaço
e o cancro da próstata,
trouxe as cinzas que as ninfas e as sereias
(e a aranha negra de Ogígia)
içaram em mim

viajei por quantas camas insulam o Mediterrâneo
e nem tu nem eu temos culpa ou salvação

Telémaco, tão criança é ele ainda e tão forte já

envelheceu o arco que me arremessa a pique
nestas escarpas de búteos e oliveiras escassas

lá em baixo é a espuma que me mata.
disse-te que quero morrer?

fica pois tecendo, rainha inútil!
é de escolhos que a vida se faz,
vinte anos de ardimento roem até ao osso
e depois mais nada, só a doença, só a ilha despida,
só a memória voando e voando até soçobrar
ou alguém fazer com ela uma epopeia,
e mentir, mentir, mentir

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2.
DIRIGE-SE PENÉLOPE A ULISSES

na verdade, nem sei se te amo:
talvez te ame como às cabrinhas,
tão inofensivas primeiro e depois não.
talvez te deseje no mesmo ergástulo

desces a encosta com o teu antigo chocalho,
sinto-te aproximar
(agora humilde, antes não),
e eu acaricio-te o dorso,
conto os dias que faltam
(a minha vingança,
este lampejo indefinido de mulher que sou até às entranhas),
para te sorrir
e apunhalar no cachaço

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«A assim chamada vida» (Czesław Miłosz)

Life, Vida, Vita, Vie
Fotografia de Wolfgang Hasselman

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«A ASSIM CHAMADA VIDA» (CZESŁAW MIŁOSZ)

a assim chamada vida,
– isto é, o eu, o nós, a existência periclitante dos seres que nascem,
agem, poisam um seu lugar no mundo –
tem tudo para falhar

a escassez de água, o excesso de temperatura, a luz inóspita,
mas também a chusma infindável de causas fortuitas,
o erro na fecundação, a doença congénita, o meteoro assassino,
mas também o acidente de comboio, a queda fatal da árvore,
o mergulho fora de horas na piscina,
mas também a boca do déspota beligerante, a marcha da soldadesca,
o gargalo dos canhões

mas também as pragas bíblicas, as carnificinas homéricas,
as células cancerígenas

mas igualmente o desaire do jovem Werther,
a assincronia fatal de Romeu e de Julieta,
o desgosto inquantificável de Anna Karénina

mas igualmente o espaço e o tempo,
a disposição do deus arbitrário das bênçãos e das misérias,
o deus das promessas ditosas e das falas funestas,
o deus-sincrético, o deus uno, o deus panteísta,
o deus-amor, o deus violento, o do silêncio

mas igualmente o antes, o logo depois e o durante

a assim chamada vida cambaleia, rasteja, suplica às vezes,
às vezes renasce inesperadamente, prolifera, fagocita,
suspende-se a si mesma,
devora-se a si própria,
apavora-se consigo a sós,
aniquila os fracos, exubera entre os absurdos,
transmite-se como uma carta em segredo no interior do castelo

a assim chamada vida
– ou seja, o ornitorrinco, os protozoários, as praias da Polinésia,
o adágio de Barber, os azuis de Klein, a beterraba,
a Estrela da Morte, as estrelas Michelin, a estrela da beladona –
é uma versão da lotaria,
um algarismo algures entre o vermelho e o negro
de todas as formas imensas da sorte ou do infortúnio

a assim chamada vida
– que prodígio, que milagre –
tem tudo para falhar
e, no entanto, triunfa, triunfou sempre, leitor!

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Paisagens tártaras

Old Trabant.
Fotografia de Vojta Kucer

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PAISAGENS TÁRTARAS

paisagens tártaras,
montanhas, campónios, silêncio.
gemer de um velho arado anacrónico.
silêncio.
de quando em quando o altear das vozes,
bois, mulheres de lenço atado na cabeça, viúvas.
silêncio

as searas estendem-se até ao Cáucaso.
as mulheres estendem-se até ao Cáucaso.
a ceifa estende-se até ao Cáucaso

sufoca-se

água e pão até ao Cáucaso.
crianças e velhos deitados até ao Cáucaso.
cansados, ressonando, até ao Cáucaso

linguagem universal,
restos mortais de um Trabant na várzea,
córnea oxidada, trevo engolindo-o
devagar

(o verde vence sempre na política!)

muro de cimento. ou será de betão?
áspero, sujo, tisnado

a criança trouxe giz, trouxe sol,
gatafunhos, um modo seu de ser flor,
um pai distante, cacos
em forma de coração

no açafate, um frasco de mel, figos,
uvas, pão.
dedos carinhosos: como antigamente.
mas a lâmpada tantas vezes nos acorda.
nem sequer de vidro. acesa, sim.
de jejum

domingo.
coisas perfeitas, domesticadas, mansas.
almoço em família, pensamento longe, nos arredores da lógica.
ela veste calças de couro e botins de camurça.
os cabelos louros caem-lhe sobre os ombros, lisos como
linhas de água, independentes

domingo.
conversa-se sem pressa, conserva-se a harmonia.
o sorriso é de lei: um dobrão antigo.
sorrio, sorrimos: é domingo!
ela compreende, talvez compreenda,
oxalá compreendesse. pensamento longe,
em metades, como um frasco partido

cheiro de merda quente,
animais trotando devagar, entre
o seu destino e o seu destino

pegadas e fezes pesando
no meu chão: animal entre
animais, afundo

a chuva lava agora a posteridade,
o alcatrão e os telhados, persianas, quintais, contentores, goteiras,
chinelos esquecidos na varanda, focinhos de cães,
a vidraça esquálida no posto da polícia, tudo,
gasóleo, urina, restos de gelado, metades de pão,
frases em língua estrangeira, pensamentos tardios,
a vil melancolia do sul, tudo

um oleado amarelo mantém a ordem.
perfume de açucenas, detergente de hotel, limpeza.
a cabeça lavada, lavada, lavada!

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Funcho

Schwoaze
Fotografia de Sabine

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FUNCHO

fim de tarde, degraus musgosos, uma azenha
desmantelada, tufos de erva alta
crescidos sobre o rio, algas
nas águas límpidas, agriões, o azul
da buglossa, malmequeres amarelos, o branco
da hortelã-brava, o roxo dos ervilhais
e da lavanda

fim de tarde, degraus musgosos, silêncio
pairando na orla dos caminhos.
acocorado na terra húmida, como quem
se lava no verde, pulmões abertos para o esplendor
do funcho!
pensamento sem portas ou janelas.
como quem tivesse descido ao paraíso!

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Enfarna

enfarna, flor de oliveira, primavera, verão
Fotografia de Josevi Parra

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ENFARNA

lia um poema de Tassos Denegris,
a terra era seca,
as oliveiras floridas mostravam
como se pode e como se deve.
o sol empunhava a mão
contra as pedras,
havia um aroma subtil
no pó.
as metáforas faiscavam em pouco
e calavam-se:
enfarna era a palavra,
a palavra que me seduzia

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