Janeiro

cais no inverno (Janeiro)
Fotografia de Maxime Barrell

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JANEIRO

manhã de sábado.
acordamos devagar na viração fria,
no cheiro forte que o mar traz em salpicos
e que as gaivotas elevam sobre
o paredão

o vento faz drapejar as bandeiras no cais,
atira-nos contra a luz,
esmaga-nos como espuma

recebo-te nos meus braços.
porém és tu quem me abriga

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Janeiro, memórias

Jean Vandijck - Mill in the fog
Fotografia de Jean Vandijck

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JANEIRO, MEMÓRIAS

sobe às vezes de dentro de nós, como por eclusas, a visão esquecida da mesma paisagem. e então o moinho roda, os mortos voltam, o velho passal enche-se de fragrâncias verdes, brotos, frutos. no mesmo lugar onde os herdeiros disputam hoje redes altas de arame o sol perpassa, há vozes, paz, crianças a correr, leves pássaros saltitando, paz

como nas iluminuras antigas vê-se tudo, tudo

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«A assim chamada vida» (Czesław Miłosz)

Life, Vida, Vita, Vie
Fotografia de Wolfgang Hasselman

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«A ASSIM CHAMADA VIDA» (CZESŁAW MIŁOSZ)

a assim chamada vida,
– isto é, o eu, o nós, a existência periclitante dos seres que nascem,
agem, poisam um seu lugar no mundo –
tem tudo para falhar

a escassez de água, o excesso de temperatura, a luz inóspita,
mas também a chusma infindável de causas fortuitas,
o erro na fecundação, a doença congénita, o meteoro assassino,
mas também o acidente de comboio, a queda fatal da árvore,
o mergulho fora de horas na piscina,
mas também a boca do déspota beligerante, a marcha da soldadesca,
o gargalo dos canhões

mas também as pragas bíblicas, as carnificinas homéricas,
as células cancerígenas

mas igualmente o desaire do jovem Werther,
a assincronia fatal de Romeu e de Julieta,
o desgosto inquantificável de Anna Karénina

mas igualmente o espaço e o tempo,
a disposição do deus arbitrário das bênçãos e das misérias,
o deus das promessas ditosas e das falas funestas,
o deus-sincrético, o deus uno, o deus panteísta,
o deus-amor, o deus violento, o do silêncio

mas igualmente o antes, o logo depois e o durante

a assim chamada vida cambaleia, rasteja, suplica às vezes,
às vezes renasce inesperadamente, prolifera, fagocita,
suspende-se a si mesma,
devora-se a si própria,
apavora-se consigo a sós,
aniquila os fracos, exubera entre os absurdos,
transmite-se como uma carta em segredo no interior do castelo

a assim chamada vida
– ou seja, o ornitorrinco, os protozoários, as praias da Polinésia,
o adágio de Barber, os azuis de Klein, a beterraba,
a Estrela da Morte, as estrelas Michelin, a estrela da beladona –
é uma versão da lotaria,
um algarismo algures entre o vermelho e o negro
de todas as formas imensas da sorte ou do infortúnio

a assim chamada vida
– que prodígio, que milagre –
tem tudo para falhar
e, no entanto, triunfa, triunfou sempre, leitor!

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Contempla-nos a flor

dae jeung kim
Fotografia de dae jeung kim

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CONTEMPLA-NOS A FLOR

às vezes, no meio de um silvado,
ofuscada pela trança verde dos espinhos,
aturdida pelas sombras,
contempla-nos a flor

e eu penso
este é o prodígio dos frágeis
e esquecidos –
durar, sobreviver, existir

nunca,
nunca poesia foi outra coisa

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