esta manhã olhei as unhas,
o rigor com que a pele mascava o interior das palavras,
o desenho elegante da mobília, o livro, o caderno.
vi em mim o teu corpo desaparecido,
o secreto júbilo que te amparava na natureza das coisas silenciosas,
o arrumo dos pensamentos,
a delicadeza das sombras
nunca depois da tua morte me pareceste tão real
olhei as minhas mãos entre as flores secas do vaso,
na linha do aparador, no papel imaculado,
os meus dedos erguendo o pequeno suporte de vidro onde voltará
um círio a arder (agora e para sempre)
em louvor da Sagrada Família,
a minha pele contra o rumor das cortinas
que ferem de leve as paredes
as unhas derramam o vazio e tu vens:
tocares cada poema com ternura
é ainda – mãe minha e nossa – algo que me consola
sopeso-os na mão, acaricio-lhes a pele enrugada, o pó-verdete repousando entre as volutas do seu dorso. depois na fruteira eles são invariavelmente o sol, luz que a casa acalenta com prazer
a faca que os corta pela metade enche-se do seu sangue translúcido e perfumado – e amargo – e as narinas ventilam a sua presença vívida e pujante
nenhum alimento desdenha o segregar humilde deste citrino, como não o faz a memória à voz de velhos mestres que se tiveram, e que outrora nos impunham a decência inquebrável da caneta sobre o caderno
diria que o sangue dos limões é cândido e talvez um pouco triste, mas jamais inócuo – jamais indiferente
por vezes um grande silêncio sai de baixo das pedras
e é um grande silêncio o dia todo,
as moscas não voejam no lugar das moscas
nem o verde das folhagens parece tão verde.
a cabeça não está a compreender-se
e ninguém de fora assoma para despertá-la
do seu torpor,
simplesmente o tempo não aparenta estar na razão
de que existe como se um interminável dia de julho
ou agosto tivesse alcançado por fim
não a eternidade ou a perenidade, mas
a porta do labirinto que dá para as traseiras
de si mesmo
sobe às vezes de dentro de nós, como por eclusas, a visão esquecida da mesma paisagem. e então o moinho roda, os mortos voltam, o velho passal enche-se de fragrâncias verdes, brotos, frutos. no mesmo lugar onde os herdeiros disputam hoje redes altas de arame o sol perpassa, há vozes, paz, crianças a correr, leves pássaros saltitando, paz
a assim chamada vida,
– isto é, o eu, o nós, a existência periclitante dos seres que nascem,
agem, poisam um seu lugar no mundo –
tem tudo para falhar
a escassez de água, o excesso de temperatura, a luz inóspita,
mas também a chusma infindável de causas fortuitas,
o erro na fecundação, a doença congénita, o meteoro assassino,
mas também o acidente de comboio, a queda fatal da árvore,
o mergulho fora de horas na piscina,
mas também a boca do déspota beligerante, a marcha da soldadesca,
o gargalo dos canhões
mas também as pragas bíblicas, as carnificinas homéricas,
as células cancerígenas
mas igualmente o desaire do jovem Werther,
a assincronia fatal de Romeu e de Julieta,
o desgosto inquantificável de Anna Karénina
mas igualmente o espaço e o tempo,
a disposição do deus arbitrário das bênçãos e das misérias,
o deus das promessas ditosas e das falas funestas,
o deus-sincrético, o deus uno, o deus panteísta,
o deus-amor, o deus violento, o do silêncio
mas igualmente o antes, o logo depois e o durante
a assim chamada vida cambaleia, rasteja, suplica às vezes,
às vezes renasce inesperadamente, prolifera, fagocita,
suspende-se a si mesma,
devora-se a si própria,
apavora-se consigo a sós,
aniquila os fracos, exubera entre os absurdos,
transmite-se como uma carta em segredo no interior do castelo
a assim chamada vida
– ou seja, o ornitorrinco, os protozoários, as praias da Polinésia,
o adágio de Barber, os azuis de Klein, a beterraba,
a Estrela da Morte, as estrelas Michelin, a estrela da beladona –
é uma versão da lotaria,
um algarismo algures entre o vermelho e o negro
de todas as formas imensas da sorte ou do infortúnio
a assim chamada vida
– que prodígio, que milagre –
tem tudo para falhar
e, no entanto, triunfa, triunfou sempre, leitor!