Viagem pela Europa

Fotografia de Lucas Chizzali

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VIAGEM PELA EUROPA

nada suplanta esta impressão que o sol empresta às coisas,
este beijo da luz sobre os teus ombros,
contra as paredes,
por entre as palavras

é-se feliz e inocente, é-se livre e capaz
em Troia e em Ítaca, em Estocolmo
ou Lisboa

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Paris

Paris at sunset
Fotografia de Chris Linnet

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PARIS

clarões de memória, fosfenos dançando nos olhos, a data
de trinta de maio de dois mil e quatro

ranúnculos de todas as cores nos jardins,
especialmente vermelhos, vidraças repletas em direção ao Sena,
depois um Malinois enorme, a rapariga negra
de olhos esmeralda

pequenas alfinetadas na ponta dos dedos, cheiro de
algum cigarro esquecido no cinzeiro da mesa de café, vozes
misturadas de gatos e pássaros nas varandas

o céu em tons de fogo declinava para os lados da Bastilha,
o cão altivo acompanhava a sua deusa,
eu sobraçava um livro com retratos de Giorgio Morandi
e aquilo tudo por alguma razão ficou,
ou mesmo por nenhuma

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Do amor pelas nossas mãos

quino-al (hands)
Fotografia de Quino Al

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DO AMOR PELAS NOSSAS MÃOS

a cabeça encheu-se de vozes
(promessas, sentenças, declarações de amor),
mas a felicidade
é a curvatura das nossas mãos

elas agarram, escavam, procuram

uma palavra a mais, uma palavra a menos:
faltava-me escrever este poema

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A lenta desaparição de nós mesmos

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Fotografia de Ruth Wellman

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A LENTA DESAPARIÇÃO DE NÓS MESMOS

atravesso as dunas, a lenta oscilação da cor, o vento,
o áspero rancor das areias, os rizomas secos,
atravesso a sombra inócua dos meus passos submersos,
o esquivo lugar que caldeia o sangue e me chama pelo nome,
atravesso formas de tinta, borrões, elegíacas borboletas
zarpando da cabeça em direção ao nada,
atravesso lunações, lucivelos, lágrimas que tudo subtraem à luz,
atravesso os fundos granitos da água como um barco,
atravesso a alta ruína que estremece com todo o medo
e sou dia e noite nos interstícios dos equinócios
e sou uma dor crescente,
atravesso o silêncio, a frívola armação em esqueleto das ideias,
atravesso-me como um inseto, como pó vazando as cavidades,
atravesso o sensível vazio que se antecipa ao varrer do vento,
as dunas, a máquina do silêncio, a dicotomia da morte,
atravesso o poema, a semântica, a cinza que dele em breve
há de restar no lugar do lume,
atravesso o meu próprio arrepio de me saber nada,
absolutamente nada, nem a memória de nada, nada, nada,
e depois calo, desofego, imobilizo-me,
sou um ponto amarfanhado no chão, depois nem isso,
depois, em última análise, nem a memória desse esquecimento

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Imitação de Cristo, Kempis

Wenmin Zhang, Kumtag Desert
Fotografia de Wenmin Zhang

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IMITAÇÃO DE CRISTO, KEMPIS.

E que há de mais livre que o que nada deseja neste mundo?
Tomás de Kempis, Imitação de Cristo

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nunca é tarde demais.
procura a força do deserto, a distância,
procura a luminosidade dos grãos movediços e duros,
o adobe,
o cheiro das dunas,
o vento dobrando-se no erg,
procura-te na voz do nazareno,
na secura dos essénios,
na abstinente leveza dos berberes de túnica azul

nunca é tarde demais.
despoja-te do tempo e do espaço, despe-te da sombra e da luz.
nada existe no mundo que seja maior,
ou mais do que tu

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Meditação, Lago Lucerna

Albrecht Fietz - mountains
Fotografia de Albrecht Fietz

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MEDITAÇÃO, LAGO LUCERNA

então de súbito o sol aclara o vidro opaco
e enche de silêncio o espaço.
é um sinal de que talvez dias mais propícios nos aguardem à puridade
e de que talvez nos encontrem numa plataforma confusa
onde comboios param e partem a toda a hora,
de que talvez esses dias fastos nos coloquem a mão sobre o ombro
e conheçam o nosso nome,
e de que então de súbito saibamos exatamente quem somos,
iluminados por uma paz em tudo igual a esta paz,
igual à que nos frescos de Pompeia e de Herculano produzem
o vermelho-cinábrio e o ocre e o azul,
igual à que possuem certas palavras quando numa manhã anódina,
numa manhã como esta, escambrando o céu sobre o Lago Lucerna,
alguém as murmura com amor, sem pressa, ao nosso ouvido

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Já sabes onde me encontrar

Nevoeiro na estrada, com casas. Mistério.
Fotografia de Pierre Pellegrini

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JÁ SABES ONDE ME ENCONTRAR

já sabes onde me encontrar:
no sítio onde o génio e o imbecil trocam de posição
e às vezes pelejam, como dois garotos no recreio.
terei nas mãos os mesmos dedos, mais queimados
pelo cigarro.
usarei o casaco elegante que me ofereceste,
quando não tinha outro.
prometo não dececionar-te:
repetirei a história de Tristão e Isolda de que tanto gostas,
ou a triste sina de algum novo compositor,
ou alguma coscuvilhice erudita entre as nove filhas de Mnemósine

não me peças explicações nem me dês conselhos:
sempre detestei a verdade

prefiro que abras as janelas para o sol entrar,
ou me tragas a quieta poesia de um ramo de malmequeres

não sou ambicioso: sabes que nunca fui.
basta-me o amor sincero, a beleza de Bach
e o teu corpo no lugar onde (por muitas fogueiras
que ardam) jamais conseguirei aquecer-me

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Leitura do poema no Youtube