Fósforos

Fotografia de Kelly Sikkema

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FÓSFOROS

por alguma razão os fósforos se recusavam
nas noites de lua cheia.
e se insistia em acendê-los o vento levava-os à nascença
como pequenas folhas de ouro, moribundas
e dançantes

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Lavanda-do-mar

statice, limonium, lavanda do mar
Fotografia de Madeleine d’ Orsay

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LAVANDA-DO-MAR

sobre a mesa a lavanda-do-mar era branca e amarela,
às vezes roxa e encarnada

tudo convergia para si, como quando alguém
pigarreia e quer falar

agosto/2020

Felicidade

Coffee Jan van der Linden
Fotografia de Jan van der Linden

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FELICIDADE

talvez não reste grande coisa,
talvez pouco mais do que a chávena de café,
as seis suítes de Bach,
o modo como o sol tardio nos vem acender sem pânico
um cigarro esquecido na boca,
a certeza de que agora, nel mezzo del camin, somos sinceros
como um espirro

restam-nos talvez migalhas, bugigangas, pequeníssimas porções
de luz.
tornámo-nos a bem dizer ladrões,
larápios do instante:
cada dia é uma casa nos subúrbios,
um corredor labiríntico,
um cofre complicado que precisamos de estudar

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As coisas olhadas ao perto

Ina Hoekstra
Fotografia de Ina Hoekstra

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AS COISAS OLHADAS AO PERTO

a ponta da lapiseira, o número π nas gotas petrificadas da chuva,
uma árvore, duas árvores, três árvores, um bosque
aparecendo na neblina, desaparecendo na neblina,
silogismos de Anaxágoras, uma colher de mel, o toque do telefone

ninguém em casa parece importar-se, sequer escutar a distância:
pela mesma janela aberta toda a urgência se dissipou.
no seu lugar um concerto de aromas outoniços,
o chilreio dos últimos pássaros (a quem presto vassalagem)

por fim também a eletrostática se cala, os pensamentos também.
o silêncio olhado ao perto é uma flor de muitas salas,
escadarias, móveis, divisões subterrâneas, amplos jardins envelhecidos,
uma casa às escuras depois de acendermos o fósforo

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Paisagens de outono

Paisagem de outono com teia de aranha.
Fotografia de Adina Voicu

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PAISAGENS DE OUTONO

talvez uma aranha negra se passeie pelo trapézio das estrelas.
patas de veludo poliram o firmamento neste mês de outubro:

antigas constelações rebrilham como lentos castiçais

os meus olhos, presos ao sortilégio da teia, pensam
nos teus próprios olhos, na água tépida que os faz descer à terra
quando a fadiga ordena que assim seja

a pequena tromba do poema filtra a luz dos frutos,
rigorosa probóscide, de tronco em tronco, todas as manhãs

sumarentas peras, figos, uvas carnudas, dióspiros:

não possuímos nome para estes meses de agora, mas árvores sim,
árvores com o quilate do mel coroando-se no silêncio

meio-dia: silêncio.
meticulosamente guardamo-lo nos frascos de compota

a doçura do sol torna-o líquido (e precioso),
como o ouro limpo de um lingote

depois, à tarde,
recosto-me numa cadeira de vime, por dentro das cortinas

escuto a paz,
escuto-a atentamente, como se o fizesse com os longos músculos vibrantes
de uma peça de Bach

ao longe rebanhos, chocalhos dispersando

como descobrirá a noite o caminho de regresso por entre
as colunas de fumo?

a murta desenha um retângulo ao redor dos meus pés.
como as sombras de um jardim, não passarei
para lá do meu próprio corpo

meia-noite:

cavilhas de um aço eternamente novo pregadas ao cosmo:
com as estrelas construo o meu alpendre

como sucede nos concursos de teatro amador, elas
são um o melhor espetáculo, porém ninguém as espreita

outubro de 2013

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O mar

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Fotografia de Seamus Rilley

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O MAR

é nos rochedos que entra o mar
(água dura em pedra mole),
entra pelos olhos de mistura com o vento,
insidioso, vivo, cavitante,
entra na memória,
entra nas tardes secretas em que juntávamos
as mãos, a boca, tudo

entra e sai, cheio de espuma,
cheio de nada

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Orpheu sobre Eurídice

Jean Delville, A Morte de Orfeu, 1893
Jean Delville, A Morte de Orfeu, 1893

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ORPHEU, SOBRE EURÍDICE

não é a morte a que tu receias,
mas a luz,
a lâmpada que te consome a nervura do olhar
e branca te anoitece,
como o pavor dos cegos
e dos ofuscados

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