
.
ODISSEIA
1.
REGRESSO DE ULISSES, O TOLO
minha velha, não esperasses tanto por mim.
trouxe do mar esta cegueira do sargaço
e o cancro da próstata,
trouxe as cinzas que as ninfas e as sereias
(e a aranha negra de Ogígia)
içaram em mim
viajei por quantas camas insulam o Mediterrâneo
e nem tu nem eu temos culpa ou salvação
Telémaco, tão criança é ele ainda e tão forte já
envelheceu o arco que me arremessa a pique
nestas escarpas de búteos e oliveiras escassas
lá em baixo é a espuma que me mata.
disse-te que quero morrer?
fica pois tecendo, rainha inútil!
é de escolhos que a vida se faz,
vinte anos de ardimento roem até ao osso
e depois mais nada, só a doença, só a ilha despida,
só a memória voando e voando até soçobrar
ou alguém fazer com ela uma epopeia,
e mentir, mentir, mentir
.
2.
DIRIGE-SE PENÉLOPE A ULISSES
na verdade, nem sei se te amo:
talvez te ame como às cabrinhas,
tão inofensivas primeiro e depois não.
talvez te deseje no mesmo ergástulo
desces a encosta com o teu antigo chocalho,
sinto-te aproximar
(agora humilde, antes não),
e eu acaricio-te o dorso,
conto os dias que faltam
(a minha vingança,
este lampejo indefinido de mulher que sou até às entranhas),
para te sorrir
e apunhalar no cachaço
.







