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NOITE DE VERÃO
sou o alpendre onde o vento
se deita com a lua
a tua voz encontrou-me.
e agora?
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NOITE DE VERÃO
sou o alpendre onde o vento
se deita com a lua
a tua voz encontrou-me.
e agora?
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AMOR
era no tempo das flores,
o sol estava para lá dos cílios,
no ar sentia-se o desenho vibrante de um zangão.
deitado na erva, eu não pensava em nada,
nem sequer no silêncio
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NO CENTENÁRIO DE EUGÉNIO DE ANDRADE
procurava o mar
como quem busca o som de um provérbio,
ou o frio de novembro
para no tempo se agasalhar do tempo
a imensidão da água
– o que quer que ela fosse –
era o mais parecido que há
com a eternidade
seguia pelo areal com a crença
do peregrino
a quem faltassem motivos
para acreditar
às vezes percutia-lhe nos pés
uma concha náufraga,
quebrada,
moribunda
e havia nisto um sentido,
uma dor escanzelada e aguda, uma metáfora:
algo lhe mostrava alguém,
alguém lhe dizia algo
.
BRUXELAS
de noite todos os olhos são gatos
foi o que pensei naquela varanda de hotel
em Bruxelas, enquanto sobre nós
(em direção a Zaventem)
descia o ronco dos aviões
e o fumo de um cigarro nos embrulhava
aos dois, caçado e caçador, e vice-versa
.
BACH, POR FAVOR!
esqueço-me de tudo,
do claro pavor das impurezas, dos remorsos,
dos desastres,
das viagens por fazer,
dos pássaros e amores voláteis,
do rosto sombrio que me persegue no espelho,
dos dias sem sonhar
engelha-se-me o coração.
Bach, por favor!
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AUTOESTRADA
viajo entre ponteiros, sem pressa, oco, engolindo paisagens.
na rádio leram há pouco um poema de Inger Christensen:
poema maravilhoso, peneirando luz, vivo em cada palavra,
entre cada imagem
nunca tinha ouvido falar de Inger Christensen
agora na mesma estação escuto a Berceuse de Armas Järnefelt.
tocam ao violoncelo Sepp Laemanen e Jouni Somero ao piano
nunca me tinha cruzado com estes nomes
a manhã enfeia, lenta, vertiginosa, repleta de asfalto e frio nos pés.
de passagem os campos ralos acenam-me,
árvores quase tristes sufocam no nevoeiro.
novembro é uma sombra que em mim se abotoa.
chego ao destino, brutal como betão armado, sólido,
estúpido e infeliz
penso no poema, na música, no embalar do carro.
nunca tinha ouvido falar de Inger Christensen, nem em Järnefelt.
palpo o bolso do casaco, anoto a emoção, seguro-me ao alto.
sou um ignorante – é extraordinário