Um dia concreto

Kari Shea - couch
Fotografia de Kari Shea

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UM DIA CONCRETO.

perguntaram a Ludwig Wittgenstein se aquele era um dia concreto

o que é um dia concreto?
o que é a porra de um dia concreto?

nunca soube a resposta que deu o austro-inglês

um dia concreto.
concreto como um campo de cizânia ou de cicuta à nossa frente.
concreto como Tōru Takemitsu em Nostalghia.
concreto como o cheiro da serralha ou de uma cebola ou do chewing gum na tua boca.
concreto como um copo de água sobre a mesa

um dia concreto como estar acordado diante de um grande relógio de parede.
como olhar nos olhos os olhos que nos olham ao espelho

um dia concreto como sentir ardor na bexiga.
como ter uma pedra a rolar entre os dedos

um dia concreto como tossir sem blandícia por causa do pó.
como escrever numa folha interminável a sequência de Fibonacci.
como apalpar um traseiro.
como sentir o estrugido a queimar

um dia passado entre o frio mistral do vento e o abrasador da luz.
um dia concreto.
a escutar grilos ou a limpar ramelas.
concreto como fazer uma salada com escarolas ou rúcula ou alface.
como ler de pé Bernardo Atxaga ou Philip Levine.
ou fumar uma imitação barata de um Cohiba.
como vilipendiar alguém ao telefone por causa do condomínio

um dia concreto.
concreto como todos os dias concretos, cheios de pressa e de vagar,
mãos nos bolsos, nas luvas, na pele,
prontas a segurar o caderno e a estropiar mais um poema

um dia concreto como amar as Quatro Estações de Vivaldi
e não ter mais que dizer.
concreto como ter a barba crescida e nenhuma lâmina ou sabão em casa,
nem vontade para escanhoar o atordoado rosto, quase de novo infantil.
concreto como a autocomiseração.
como ouvir na rádio a Quarta de Brahms conduzida por Bernstein.
concreto como uma maçã, ao contrário, obclávea, tonta.
como o gemido súcubo dentro da faca que a corta em dois e em quatro.
concreto como levar um murro ou um par de cornos
e andar semanas, magoadamente, a cair sobre os ossos.
concreto como sacos de lona às costas de um farrapeiro.
como o fedor de um animal em decomposição sobre o asfalto.
concreto como o reflexo da chuva e o peso de um beijo sobre as faces

voltemos, portanto, ao começo:
perguntaram a Wittgenstein, creio que foi Russell quem o fez,
enquanto alambazava o cachimbo

o que é para si um dia concreto?

um indagava no putativo hipopótamo escondido entre os móveis da sala.
o outro meditava em matéria e antimatéria, na carta que haveria de escrever
a Niels Bohr

o que é para si um dia concreto?

era uma conversa fiada, de filósofos.
a nenhuma conclusão chegaram, como é fácil, aliás, de suspeitar

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Julho

Nicole Köhler
Fotografia de Nicole Köhler

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JULHO

o calor descia pelas linhas de alta tensão,
descia pelos vidros,
descia ao lixo na rua,
descia entre o verde das folhas,
através dos pecíolos,
descia à água,
descia à sombra,
descia

quem tomava o sabor de uma amora
queimava-se, isso era certo

os velhos chãos de serrim
cheiravam a madeira seca –
eram aparas de fogo, isso sim

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Tempo certo

astronomy-1868065_1920
Fotografia de Martin Zalba

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TEMPO CERTO

nem depressa nem devagar, mas no tempo certo,
na cauda do cometa, durante o gole de café,
enquanto se adormece uma criança

e tudo deveria durar assim, como uma infância,
a sarabanda de Bach, o beijo, um poema

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Aqueles dias

tílias - Peter H.
Fotografia de Peter

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AQUELES DIAS

Only the homeless and the really humbled
Seem to be sure exactly where they are…
W. H. Auden

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alguém disse que o tempo se faz no meio
do vácuo, entre dois parêntesis absurdos

as tílias, o canto do chapim, o aroma do funcho
são inesperadamente piedosas vírgulas
a que nos agarramos num desespero de náufragos
e sem sabermos porquê

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Campos de Alfazema, Provença

MireXa_lavender_2
Fotografia de MireXa

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CAMPOS DE ALFAZEMA, PROVENÇA

dificilmente se ignora um gesto de ternura,
um vestido vaporoso correndo
entre ângulos de luz solar ao cair do dia,
ou os cabelos loiros que esvoaçam entre linhas
intermináveis de alfazema florida

dificilmente se esquece o perfume
que em junho ou julho de um ano antigo,
numa aldeia qualquer nos arredores da Provença,
nos prende à substância do amor,
que é como se sabe o oposto da morte

dificilmente se perdoa a nós mesmos
o quilate de uma lembrança assim,
o corpo (leve de anos) correndo atrás daquela
que no campo, envolta em luz, nos foge
rindo, triunfante, para o lado da memória

dificilmente pode alguém imitar o poema
perfeito, ainda que guardando no bolso
alguns restos desse sol, algumas migalhas
dessa brisa, alguns pedaços desse riso,
algumas sobras desse amor com que o escrevias

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Luz

Interior, Sunlight on the Floor 1906 by Vilhelm Hammershoi 1864-1916
Vilhelm Hammershoi, Interior, Sunlight on the Floor, 1906

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LUZ

lâmpada tão acesa,
que nela se abriguem
os pássaros

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