o calor descia pelas linhas de alta tensão,
descia pelos vidros,
descia ao lixo na rua,
descia entre o verde das folhas,
através dos pecíolos,
descia à água,
descia à sombra,
descia
quem tomava o sabor de uma amora
queimava-se, isso era certo
os velhos chãos de serrim
cheiravam a madeira seca –
eram aparas de fogo, isso sim
dificilmente se ignora um gesto de ternura,
um vestido vaporoso correndo
entre ângulos de luz solar ao cair do dia,
ou os cabelos loiros que esvoaçam entre linhas
intermináveis de alfazema florida
dificilmente se esquece o perfume
que em junho ou julho de um ano antigo,
numa aldeia qualquer nos arredores da Provença,
nos prende à substância do amor,
que é como se sabe o oposto da morte
dificilmente se perdoa a nós mesmos
o quilate de uma lembrança assim,
o corpo (leve de anos) correndo atrás daquela
que no campo, envolta em luz, nos foge
rindo, triunfante, para o lado da memória
dificilmente pode alguém imitar o poema
perfeito, ainda que guardando no bolso
alguns restos desse sol, algumas migalhas
dessa brisa, alguns pedaços desse riso,
algumas sobras desse amor com que o escrevias
Mendonça encontrava deus nos baldios,
Eliot descobriu-o (a ele e a três leopardos albinos)
debaixo de um junípero azul,
Cocteau tocou-o na face mais fresca
da almofada
aos quarenta e cinco preocupa-me
em lado nenhum o ter descortinado ainda
talvez desconfie do vento, do vento que desalinha
os cabelos e nos enregela os ossos,
quando rente ao mar caminhamos lado a lado
e nevoenta – espumosa – a tarde cai sobre a cidade
e dedos longínquos de vapor – invisíveis –
acendem e ocultam e amam os lampiões
noutra parte da casa guardam o vinho, o azeite, o mel,
as nozes –
ânforas e vasilhas, cântaros, tulhas,
mas também a palha e o serrim, o pó,
teias de aranha gigantescas, pegadas de roedores
a forma talhada do silêncio
é um tesouro mal visitado,
casto, sem ar
debaixo da terra, num buraco, guardou o avô
cartas que a luz não pode ler.
e eu penso nesse lugar morto,
no quanto as palavras devem assentar
e não ferir –
digamos, como sucede nos sonhos
onde as palavras devoram metal,
mas que ninguém escuta
de tão calafetadas e duras que são
guardam aí o inominável,
ecos, vagas alusões, cheiros humedecidos
de papel e tinta, estalidos nas traves,
gritos que o tempo apagou
em resumo, um silo enorme a nossa vida –
cântaros, arcas, potes e bilhas,
sacos de serapilheira empilhados no escuro,
no nada
Arthur Streeton, Tojo em flor no início do verão, 1888
.
VOU CONTAR-TE
vou contar-te:
agora mesmo
a minha pele arrepiou-se
ao sentir a luz
e quando deslizou sobre
as palmas floridas
da citronela
e depois ao escutar no quarto
o ranger da madeira
na velha escrivaninha