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NOITE DE VERÃO
sou o alpendre onde o vento
se deita com a lua
a tua voz encontrou-me.
e agora?
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JULHO
o calor descia pelas linhas de alta tensão,
descia pelos vidros,
descia ao lixo na rua,
descia entre o verde das folhas,
através dos pecíolos,
descia à água,
descia à sombra,
descia
quem tomava o sabor de uma amora
queimava-se, isso era certo
os velhos chãos de serrim
cheiravam a madeira seca –
eram aparas de fogo, isso sim
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AQUELES DIAS
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alguém disse que o tempo se faz no meio
do vácuo, entre dois parêntesis absurdos
as tílias, o canto do chapim, o aroma do funcho
são inesperadamente piedosas vírgulas
a que nos agarramos num desespero de náufragos
e sem sabermos porquê
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CAMPOS DE ALFAZEMA, PROVENÇA
dificilmente se ignora um gesto de ternura,
um vestido vaporoso correndo
entre ângulos de luz solar ao cair do dia,
ou os cabelos loiros que esvoaçam entre linhas
intermináveis de alfazema florida
dificilmente se esquece o perfume
que em junho ou julho de um ano antigo,
numa aldeia qualquer nos arredores da Provença,
nos prende à substância do amor,
que é como se sabe o oposto da morte
dificilmente se perdoa a nós mesmos
o quilate de uma lembrança assim,
o corpo (leve de anos) correndo atrás daquela
que no campo, envolta em luz, nos foge
rindo, triunfante, para o lado da memória
dificilmente pode alguém imitar o poema
perfeito, ainda que guardando no bolso
alguns restos desse sol, algumas migalhas
dessa brisa, alguns pedaços desse riso,
algumas sobras desse amor com que o escrevias
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DEUS
Mendonça encontrava deus nos baldios,
Eliot descobriu-o (a ele e a três leopardos albinos)
debaixo de um junípero azul,
Cocteau tocou-o na face mais fresca
da almofada
aos quarenta e cinco preocupa-me
em lado nenhum o ter descortinado ainda
talvez desconfie do vento, do vento que desalinha
os cabelos e nos enregela os ossos,
quando rente ao mar caminhamos lado a lado
e nevoenta – espumosa – a tarde cai sobre a cidade
e dedos longínquos de vapor – invisíveis –
acendem e ocultam e amam os lampiões
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