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PAISAGENS TÁRTARAS
paisagens tártaras,
montanhas, campónios, silêncio.
gemer de um velho arado anacrónico.
silêncio.
de quando em quando o altear das vozes,
bois, mulheres de lenço atado na cabeça, viúvas.
silêncio
•
as searas estendem-se até ao Cáucaso.
as mulheres estendem-se até ao Cáucaso.
a ceifa estende-se até ao Cáucaso
sufoca-se
água e pão até ao Cáucaso.
crianças e velhos deitados até ao Cáucaso.
cansados, ressonando, até ao Cáucaso
•
linguagem universal,
restos mortais de um Trabant na várzea,
córnea oxidada, trevo engolindo-o
devagar
(o verde vence sempre na política!)
•
muro de cimento. ou será de betão?
áspero, sujo, tisnado
a criança trouxe giz, trouxe sol,
gatafunhos, um modo seu de ser flor,
um pai distante, cacos
em forma de coração
•
no açafate, um frasco de mel, figos,
uvas, pão.
dedos carinhosos: como antigamente.
mas a lâmpada tantas vezes nos acorda.
nem sequer de vidro. acesa, sim.
de jejum
•
domingo.
coisas perfeitas, domesticadas, mansas.
almoço em família, pensamento longe, nos arredores da lógica.
ela veste calças de couro e botins de camurça.
os cabelos louros caem-lhe sobre os ombros, lisos como
linhas de água, independentes
domingo.
conversa-se sem pressa, conserva-se a harmonia.
o sorriso é de lei: um dobrão antigo.
sorrio, sorrimos: é domingo!
ela compreende, talvez compreenda,
oxalá compreendesse. pensamento longe,
em metades, como um frasco partido
•
cheiro de merda quente,
animais trotando devagar, entre
o seu destino e o seu destino
pegadas e fezes pesando
no meu chão: animal entre
animais, afundo
•
a chuva lava agora a posteridade,
o alcatrão e os telhados, persianas, quintais, contentores, goteiras,
chinelos esquecidos na varanda, focinhos de cães,
a vidraça esquálida no posto da polícia, tudo,
gasóleo, urina, restos de gelado, metades de pão,
frases em língua estrangeira, pensamentos tardios,
a vil melancolia do sul, tudo
um oleado amarelo mantém a ordem.
perfume de açucenas, detergente de hotel, limpeza.
a cabeça lavada, lavada, lavada!