Bruxelas

Bruxelas
Fotografia de Lewis S.

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BRUXELAS

de noite todos os olhos são gatos
foi o que pensei naquela varanda de hotel
em Bruxelas, enquanto sobre nós
(em direção a Zaventem)
descia o ronco dos aviões
e o fumo de um cigarro nos embrulhava
aos dois, caçado e caçador, e vice-versa

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Consoada

Casa em ruínas.
Fotografia de Sven Fennema

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CONSOADA

num canto penumbroso da casa Ziro observava-se diante um espelho antigo
estremecendo à passagem do ar frio pelas frinchas

os meus avós viveram aqui

a lareira mascarrada sem fogo com os tijolos à mostra
não convencia ninguém,
nem ela, nem as janelas presas por arame, desvidradas

só as silvas, com as suas línguas
farpadas, arrepiavam:
mal os conheci.
esta noite seremos só eu e a minha mãe

havia restos da telha por toda a parte.
com os cacos desenhávamos cruzes no chão

no meio do entulho esmagado rebentavam
pés de azevinho

como podia o visqueiro nascer ali
era uma boa pergunta,
era uma excelente pergunta

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A noite

Noite, galáxia, cizânia
Fotografia de Guille Pozzi

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A NOITE

deixamos a lâmpada para trás.
uma cancela separa-nos da noite,
dos arbustos negros que entortam na extremidade

Ziro desencantou um maço de cigarros.
os fósforos tremem um pouco,
depois a fumaça sobe pela galáxia

é tão bom viver como nos der na real gana
diz ele

cheira a ervas secas e a bosta fresca

debaixo dos nossos pés, a terra em gelo
geme como os ossos dos velhos

faz-se tarde.
é melhor trincarmos peneiras de funcho,
esfregarmos as mãos com hortelã
digo eu.
é assim que um tipo se faz adulto,
dá trabalho

quanto à noite, que dizer
senão que nos parece um reino incompreensível?

sabe tão bem mijar sem medo de nada
digo eu.
Ziro acena com a cabeça: tão bem
diz ele

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Será sempre uma espécie de prólogo

Old house, in ruins. Maison ancienne, en ruine. Vecchia casa, in rovina. Casa antigua, en ruinas. 古い家、廃墟。
Fotografia de Dimitris Vetsikas

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SERÁ SEMPRE UMA ESPÉCIE DE PRÓLOGO

silêncio, a casa esquecida, o olhar
em fuga pelas paredes sem cal,
vigas a céu aberto, a cauda
dos astros,
estalidos, o chão
o chão sem fundo sobre os abismos da terra

permanecem aí numa dignidade de
aristocratas defuntos
as memórias e o amor, a solidão
e o caruncho

silêncio sim, os escombros – por assim dizer –
de uma fé antiga e abandonada

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Autoestrada

rain-ga7a4c5150_1920
Fotografia de Salvatore Grimmoni

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AUTOESTRADA

viajo entre ponteiros, sem pressa, oco, engolindo paisagens.
na rádio leram há pouco um poema de Inger Christensen:
poema maravilhoso, peneirando luz, vivo em cada palavra,
entre cada imagem

nunca tinha ouvido falar de Inger Christensen

agora na mesma estação escuto a Berceuse de Armas Järnefelt.
tocam ao violoncelo Sepp Laemanen e Jouni Somero ao piano

nunca me tinha cruzado com estes nomes

a manhã enfeia, lenta, vertiginosa, repleta de asfalto e frio nos pés.
de passagem os campos ralos acenam-me,
árvores quase tristes sufocam no nevoeiro.
novembro é uma sombra que em mim se abotoa.
chego ao destino, brutal como betão armado, sólido,
estúpido e infeliz

penso no poema, na música, no embalar do carro.
nunca tinha ouvido falar de Inger Christensen, nem em Järnefelt.
palpo o bolso do casaco, anoto a emoção, seguro-me ao alto.
sou um ignorante – é extraordinário

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Uma ânfora deu à costa

Gilles Quesnot - The amphora of a God
Fotografia de Gilles Quesnot

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UMA ÂNFORA DEU À COSTA

o que sobrou dalgum antigo império seguramo-lo
agora nas mãos: barro, água salgada,
resquícios de azeite ou de vinho, restos
de garum, fragmentos escassos dalguma
essência rara

a nós o enviaram os velhos deuses
preteridos, a nós o enviaram como
se envia para longe, a alguém, uma derradeira
mensagem antes da
capitulação

asseguremo-nos, por isso, de que o tempo
faz justiça, de que a palavra soterrada
pelo silêncio e pelas marés permanecerá
íntegra e preciosa, límpida
e viva

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Contempla-nos a flor

dae jeung kim
Fotografia de dae jeung kim

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CONTEMPLA-NOS A FLOR

às vezes, no meio de um silvado,
ofuscada pela trança verde dos espinhos,
aturdida pelas sombras,
contempla-nos a flor

e eu penso
este é o prodígio dos frágeis
e esquecidos –
durar, sobreviver, existir

nunca,
nunca poesia foi outra coisa

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