Janeiro

cais no inverno (Janeiro)
Fotografia de Maxime Barrell

.

JANEIRO

manhã de sábado.
acordamos devagar na viração fria,
no cheiro forte que o mar traz em salpicos
e que as gaivotas elevam sobre
o paredão

o vento faz drapejar as bandeiras no cais,
atira-nos contra a luz,
esmaga-nos como espuma

recebo-te nos meus braços.
porém és tu quem me abriga

.

Janeiro, memórias

Jean Vandijck - Mill in the fog
Fotografia de Jean Vandijck

.

JANEIRO, MEMÓRIAS

sobe às vezes de dentro de nós, como por eclusas, a visão esquecida da mesma paisagem. e então o moinho roda, os mortos voltam, o velho passal enche-se de fragrâncias verdes, brotos, frutos. no mesmo lugar onde os herdeiros disputam hoje redes altas de arame o sol perpassa, há vozes, paz, crianças a correr, leves pássaros saltitando, paz

como nas iluminuras antigas vê-se tudo, tudo

.

Solstício

Jörg Peter
Fotografia de Jörg Peter

.

SOLSTÍCIO

nesse ano o quinquilheiro não apareceu.
esperámos por ele como se espera um dia de sol,
como se aguarda uma notícia vinda de França,
como se adivinha uma ninhada de pintos por Santo António

mas nem sinal da furgoneta,
da buzina de fole,
das ferragens batendo umas nas outras

a minha mãe contava comprar-lhe, se não me engano, um alguidar de cobre.
via-o já polido e brilhante, arrubinado, como a cor de um arrebol
um pouco antes do dia e do anoitecer

o adro encheu-se de gente,
uns para trazer, outros para levar bugigangas,
mas o descarado não veio

a luz foi minguando, até que os que ali restavam mal se viam uns aos outros.
por fim também eles debandaram.
só um cachorro sem dono ficou,
aninhado sob os braços do grande damasqueiro do padre Francisco

o inverno entrou pelos portões do cemitério

mortas de desgosto, as ervas tombavam no intervalo das pedras.
a tremer, coberto pelas finas camadas do frio, abri a porta de casa

vadio como era, também eu aluía nas pernas

.

Fósforos

Fotografia de Kelly Sikkema

.

FÓSFOROS

por alguma razão os fósforos se recusavam
nas noites de lua cheia.
e se insistia em acendê-los o vento levava-os à nascença
como pequenas folhas de ouro, moribundas
e dançantes

.

Lavanda-do-mar

statice, limonium, lavanda do mar
Fotografia de Madeleine d’ Orsay

.

LAVANDA-DO-MAR

sobre a mesa a lavanda-do-mar era branca e amarela,
às vezes roxa e encarnada

tudo convergia para si, como quando alguém
pigarreia e quer falar

agosto/2020

Felicidade

Coffee Jan van der Linden
Fotografia de Jan van der Linden

.

FELICIDADE

talvez não reste grande coisa,
talvez pouco mais do que a chávena de café,
as seis suítes de Bach,
o modo como o sol tardio nos vem acender sem pânico
um cigarro esquecido na boca,
a certeza de que agora, nel mezzo del camin, somos sinceros
como um espirro

restam-nos talvez migalhas, bugigangas, pequeníssimas porções
de luz.
tornámo-nos a bem dizer ladrões,
larápios do instante:
cada dia é uma casa nos subúrbios,
um corredor labiríntico,
um cofre complicado que precisamos de estudar

.

As coisas olhadas ao perto

Ina Hoekstra
Fotografia de Ina Hoekstra

.

AS COISAS OLHADAS AO PERTO

a ponta da lapiseira, o número π nas gotas petrificadas da chuva,
uma árvore, duas árvores, três árvores, um bosque
aparecendo na neblina, desaparecendo na neblina,
silogismos de Anaxágoras, uma colher de mel, o toque do telefone

ninguém em casa parece importar-se, sequer escutar a distância:
pela mesma janela aberta toda a urgência se dissipou.
no seu lugar um concerto de aromas outoniços,
o chilreio dos últimos pássaros (a quem presto vassalagem)

por fim também a eletrostática se cala, os pensamentos também.
o silêncio olhado ao perto é uma flor de muitas salas,
escadarias, móveis, divisões subterrâneas, amplos jardins envelhecidos,
uma casa às escuras depois de acendermos o fósforo

.