No centenário de Eugénio de Andrade

Foz do Porto, Portugal
Fotografia de Adri Marie

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NO CENTENÁRIO DE EUGÉNIO DE ANDRADE

procurava o mar
como quem busca o som de um provérbio
ou o frio de novembro
para no tempo se agasalhar do tempo

a imensidão da água
– o que quer que ela fosse –
era o mais parecido que há
com a eternidade

descobriu-se no areal com a ternura
do peregrino
a quem faltassem motivos
para acreditar

às vezes vinha-lhe aos pés
uma concha náufraga,
quebrada,
moribunda

e havia nisto um sentido,
uma dor escanzelada e aguda, uma metáfora:
algo lhe mostrava alguém,
alguém que lhe repetia algures estou aqui, estou aqui

19.01.2023

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Bruxelas

Bruxelas
Fotografia de Lewis S.

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BRUXELAS

de noite todos os olhos são gatos
foi o que pensei naquela varanda de hotel
em Bruxelas, enquanto sobre nós
(em direção a Zaventem)
descia o ronco dos aviões
e o fumo de um cigarro nos embrulhava
aos dois, caçado e caçador, e vice-versa

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Consoada

Casa em ruínas.
Fotografia de Sven Fennema

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CONSOADA

num canto penumbroso da casa Ziro observava-se diante um espelho antigo
estremecendo à passagem do ar frio pelas frinchas

os meus avós viveram aqui

a lareira mascarrada sem fogo com os tijolos à mostra
não convencia ninguém,
nem ela, nem as janelas presas por arame, desvidradas

só as silvas, com as suas línguas
farpadas, arrepiavam:
mal os conheci.
esta noite seremos só eu e a minha mãe

havia restos da telha por toda a parte.
com os cacos desenhávamos cruzes no chão

no meio do entulho esmagado rebentavam
pés de azevinho

como podia o visqueiro nascer ali
era uma boa pergunta,
era uma excelente pergunta

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A noite

Noite, galáxia, cizânia
Fotografia de Guille Pozzi

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A NOITE

deixamos a lâmpada para trás.
uma cancela separa-nos da noite,
dos arbustos negros que entortam na extremidade

Ziro desencantou um maço de cigarros.
os fósforos tremem um pouco,
depois a fumaça sobe pela galáxia

é tão bom viver como nos der na real gana
diz ele

cheira a ervas secas e a bosta fresca

debaixo dos nossos pés, a terra em gelo
geme como os ossos dos velhos

faz-se tarde.
é melhor trincarmos peneiras de funcho,
esfregarmos as mãos com hortelã
digo eu.
é assim que um tipo se faz adulto,
dá trabalho

quanto à noite, que dizer
senão que nos parece um reino incompreensível?

sabe tão bem mijar sem medo de nada
digo eu.
Ziro acena com a cabeça: tão bem
diz ele

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Será sempre uma espécie de prólogo

Old house, in ruins. Maison ancienne, en ruine. Vecchia casa, in rovina. Casa antigua, en ruinas. 古い家、廃墟。
Fotografia de Dimitris Vetsikas

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SERÁ SEMPRE UMA ESPÉCIE DE PRÓLOGO

silêncio, a casa esquecida, o olhar
em fuga pelas paredes sem cal,
vigas a céu aberto, a cauda
dos astros,
estalidos, o chão
o chão sem fundo sobre os abismos da terra

permanecem aí numa dignidade de
aristocratas defuntos
as memórias e o amor, a solidão
e o caruncho

silêncio sim, os escombros – por assim dizer –
de uma fé antiga e abandonada

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Autoestrada

rain-ga7a4c5150_1920
Fotografia de Salvatore Grimmoni

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AUTOESTRADA

viajo entre ponteiros, sem pressa, oco, engolindo paisagens.
na rádio leram há pouco um poema de Inger Christensen:
poema maravilhoso, peneirando luz, vivo em cada palavra,
entre cada imagem

nunca tinha ouvido falar de Inger Christensen

agora na mesma estação escuto a Berceuse de Armas Järnefelt.
tocam ao violoncelo Sepp Laemanen e Jouni Somero ao piano

nunca me tinha cruzado com estes nomes

a manhã enfeia, lenta, vertiginosa, repleta de asfalto e frio nos pés.
de passagem os campos ralos acenam-me,
árvores quase tristes sufocam no nevoeiro.
novembro é uma sombra que em mim se abotoa.
chego ao destino, brutal como betão armado, sólido,
estúpido e infeliz

penso no poema, na música, no embalar do carro.
nunca tinha ouvido falar de Inger Christensen, nem em Järnefelt.
palpo o bolso do casaco, anoto a emoção, seguro-me ao alto.
sou um ignorante – é extraordinário

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Impressões de outono

Outono . Autumn . Otoño
Fotografia de Janek Sedlar

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IMPRESSÕES DE OUTONO

a tarde bate em retirada ao longo da várzea. no seu lugar, escondido no bosque e nas primeiras trevas – sorrateiro como as fundações de um moinho – o som velho das gralhas. musgo e fungos trepam desde as folhas secas, carvalhos leprosos abrem longos dedos decrépitos até aos derradeiros fiapos de luz que vazam a copa engastalhada e descem à linha reta composta por todos os troncos. em breve por aqui passarão as sombras. o frio pole as pedras, pole os perfumes, pole o leito tranquilo sob as águas do ribeiro. a paisagem impõe respeito. íntima do silêncio, ela escreve devagar o seu próprio epitáfio. cada passada no estreito caminho de terra é um convite ao futuro: as botas gravam no lamaçal a nossa biografia. cada vez mais próximos da terra, os ossos pesam sob a arquitrave do pensamento, como obsidianas, as gralhas rasgam de alto a baixo o instante, mostram a clareira do abandono. quem aqui chega há de regressar a lado nenhum. como num sonho, o caminho é sempre em frente até perder-se, até que num lampejo de lucidez alguém nos sacuda e salve de nós mesmos

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