
.
CAFÉ
bebo café, continuarei a bebê-lo como
quem lança cuspo às mãos ou um fio de água
às pedras que se talham
as noites são às vezes cruéis, às vezes impenetráveis
no som rouco que desce pelas paredes, às vezes
insípidas
não é fácil buscar esse outro lugar
de memórias, onde nos guardamos do óxido, esse
outro lugar mavioso, feérico das palavras, que
por nossa causa fora, um dia ditas
com amor extremo
as noites às vezes são densas, é preciso
por isso parafinar as mãos, impermeabilizar-lhes
o ardor
bebo café, continuarei a bebê-lo até
que o poema resgate o belo que há, que houve
na vida, até ser dia, até que se britem
os estuporados átomos da melancolia, até ser leda
a luz que atravessa a forma informe das palavras, até
o café frio mais não ser do que o nosso
próprio sangue caindo em nós,
muito de cima, muito dentro, sem
amparo