Lavanda-do-mar

statice, limonium, lavanda do mar
Fotografia de Madeleine d’ Orsay

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LAVANDA-DO-MAR

sobre a mesa a lavanda-do-mar era branca e amarela,
às vezes roxa e encarnada

tudo convergia para si, como quando alguém
pigarreia e quer falar

agosto/2020

Casa de praia

Fotografia de Rico Cavallo
Fotografia de Rico Cavallo

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CASA DE PRAIA

manhã de agosto.
agora já só restam alguns dias

a cabeça, ao contrário do começo deste mês,
pesa e cai desgraçadamente.
como as luminosas pétalas do limónio
desagrega-se
e há espinhos à volta dela que a defendem e sitiam
e estrangulam

sobre a mesa não se conjuntam já
os copos, os sumos, o ardor da geleia,
a fruta

cada um tomará o pequeno-almoço na sua hora
e muitos de nós já partiram.
as noites de calor intenso intervalam agora
com serões de nevoeiro
e a cama na solidão ouve o ranger da insónia
e da lua

– a lua cheia de agosto –

quem me dirá porque, sobreposto à neblina, o seu halo
me parece um enfermo saltando no sargaço,
ferindo-se nas conchas partidas,
doendo entre as mãos?

se mergulho no seu aroma húmido, verei
o paulatino desfilar das minhas mulheres,
da mais nova, daquela cujos seios há muito beijei
não sabendo o que fazia,
da outra, da que me rasgou o orgulho como se rasga
um corpo com punhal,
daquela a quem confiei segredos inexistentes
e de que fujo ainda em duas décadas de vergonha

agosto é um precipício,
uma sedição,
este cheiro que nos afunda,
nos aconchega,
nos estrangula

agora já só restam alguns dias.
cabe-me recolher as espreguiçadeiras,
dobrar os panos de cozinha, fechar as portas

o último dia deste mês será como ter atingido
a outra parte do mesmo continente longínquo

aí também eu serei estrangeiro.
aí também eu serei um apátrida

agosto de 2021

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Meditação sobre o fim de agosto

Like He
Fotografia de Like He

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MEDITAÇÃO SOBRE O FIM DE AGOSTO

exaspera-me esta calma aparente. agosto quase no fim é um mês muito outro daquele que no começo me levava de azul em azul através do espaço. agora o céu é cinzento e a calma é superficial, como a véspera de alguma coisa que não se conhece bem. sei que os braços, e sobretudo a cabeça, me doem e pesam. é como se em vez de ar carregassem mágoas, ou pesadelos, ou a ameaça de uma morte. enerva-me a inexatidão dos sentidos. e por isso levanto-me e vou caminhar. também o coração se parece de chumbo. também ele me exaspera

30 de agosto de 2021

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