Lavanda-do-mar

statice, limonium, lavanda do mar
Fotografia de Madeleine d’ Orsay

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LAVANDA-DO-MAR

sobre a mesa a lavanda-do-mar era branca e amarela,
às vezes roxa e encarnada

tudo convergia para si, como quando alguém
pigarreia e quer falar

agosto/2020

«A assim chamada vida» (Czesław Miłosz)

Life, Vida, Vita, Vie
Fotografia de Wolfgang Hasselman

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«A ASSIM CHAMADA VIDA» (CZESŁAW MIŁOSZ)

a assim chamada vida,
– isto é, o eu, o nós, a existência periclitante dos seres que nascem,
agem, poisam um seu lugar no mundo –
tem tudo para falhar

a escassez de água, o excesso de temperatura, a luz inóspita,
mas também a chusma infindável de causas fortuitas,
o erro na fecundação, a doença congénita, o meteoro assassino,
mas também o acidente de comboio, a queda fatal da árvore,
o mergulho fora de horas na piscina,
mas também a boca do déspota beligerante, a marcha da soldadesca,
o gargalo dos canhões

mas também as pragas bíblicas, as carnificinas homéricas,
as células cancerígenas

mas igualmente o desaire do jovem Werther,
a assincronia fatal de Romeu e de Julieta,
o desgosto inquantificável de Anna Karénina

mas igualmente o espaço e o tempo,
a disposição do deus arbitrário das bênçãos e das misérias,
o deus das promessas ditosas e das falas funestas,
o deus-sincrético, o deus uno, o deus panteísta,
o deus-amor, o deus violento, o do silêncio

mas igualmente o antes, o logo depois e o durante

a assim chamada vida cambaleia, rasteja, suplica às vezes,
às vezes renasce inesperadamente, prolifera, fagocita,
suspende-se a si mesma,
devora-se a si própria,
apavora-se consigo a sós,
aniquila os fracos, exubera entre os absurdos,
transmite-se como uma carta em segredo no interior do castelo

a assim chamada vida
– ou seja, o ornitorrinco, os protozoários, as praias da Polinésia,
o adágio de Barber, os azuis de Klein, a beterraba,
a Estrela da Morte, as estrelas Michelin, a estrela da beladona –
é uma versão da lotaria,
um algarismo algures entre o vermelho e o negro
de todas as formas imensas da sorte ou do infortúnio

a assim chamada vida
– que prodígio, que milagre –
tem tudo para falhar
e, no entanto, triunfa, triunfou sempre, leitor!

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Em Lisboa, com Tomas Tranströmer

Fotografia de Rui Palha

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EM LISBOA, COM TOMAS TRANSTRÖMER

cidade de brancos estendais de roupa e lonas amarelas nas esplanadas,
belos olhos azuis fotografando o rumor dos elétricos, o vazio,
o voo quebrado das gaivotas,
cabos rebocadores da alfândega, andaimes, alvenéis, metáforas,
um milhão de escrupulosas palavras sob as arcadas,
debruns de granito, patas dos pardais, tudo

31.10.2013

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Aldeia

Rebecca Prest
Fotografia de Rebecca Prest

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ALDEIA

Toninho vendeu-me três ovos sarapintados
por trinta escudos

negociei-os eu uma manhã, a custo, aos sussurros, entre contas de tabuada

o sol entrava pelos janelões e fazia suspirar

quando cheguei a casa, o avô atirou-se-me às orelhas
por causa deles

eram três ovos de escrevedeira, ainda quentes,
belos como eu e as minhas irmãs juntos!

fomos à procura do ninho e descobrimo-lo,
com a ajuda de Mitrino

depois o avô levou-me pela mão até às videiras,
o podão na ilharga,
as fitas do canavial presas ao cinto como espadas

um e outro caminhámos sem pressa, de cepa em cepa,
duas sombras ao fundo da paisagem,
luminosos como agriões na água

não dissemos palavra,
nem o ranger das botas se ouvia

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Medusa

Green Eyes
Fotografia de Eric Ward

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MEDUSA

sei que me procuras ainda,
que os teus cabelos em forma de serpentes entrançadas
e os teus olhos frios, impiedosos,
me prendem ainda à terra, como ar que passa
e não torna

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Inverno

Fotografia de Martin Rak
Fotografia de Martin Rak

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INVERNO

a estrada vinha ter comigo
e eu conduzia-me vagaroso pelos meus sonhos mais longínquos.
havia charcos, folhas, insetos afogados no alcatrão.
pelo vidro a chuva espiava-me e tinha arrepios

o inverno acabava de transpor a última cancela
na várzea sombria

tudo é metáfora gania o vento

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Silêncio de arrecadação

Fotografia de Alessandro Cereda
Fotografia de Alessandro Cereda

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SILÊNCIO DE ARRECADAÇÃO

dai-me senhor a grande paz
da sala dos arrumos, dos armários
de arquivo, dos caixotes selados e
proibidos de abrir, o grande silêncio
da penumbra e placares vazios
de cortiça, o amor da sombra e
da fita-cola adesiva, dos objetos
caídos no seu próprio sono
de arrecadação

sob a pionés nenhuma palavra.
debaixo da janela a ausência de rumor.
dentro de mim isto apenas

FRÁGIL. NÃO MEXER!

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