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UM CIGARRO
era preciso que falássemos,
que abríssemos entre nós
o conforto das manhãs desassombrosas
e o cheiro do mar posto
no aroma do café
ou num cigarro
não precisávamos de palavras,
precisávamos de comunicar
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FELICIDADE
talvez não reste grande coisa,
talvez pouco mais do que a chávena de café,
as seis suítes de Bach,
o modo como o sol tardio nos vem acender sem pânico
um cigarro esquecido na boca,
a certeza de que agora, nel mezzo del camin, somos sinceros
como um espirro
restam-nos talvez migalhas, bugigangas, pequeníssimas porções
de luz.
tornámo-nos a bem dizer ladrões,
larápios do instante:
cada dia é uma casa nos subúrbios,
um corredor labiríntico,
um cofre complicado que precisamos de estudar
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CAFÉ
bebo café, continuarei a bebê-lo como
quem lança cuspo às mãos ou um fio de água
às pedras que se talham
as noites são às vezes cruéis, às vezes impenetráveis
no som rouco que desce pelas paredes, às vezes
insípidas
não é fácil buscar esse outro lugar
de memórias, onde nos guardamos do óxido, esse
outro lugar mavioso, feérico das palavras, que
por nossa causa fora, um dia ditas
com amor extremo
as noites às vezes são densas, é preciso
por isso parafinar as mãos, impermeabilizar-lhes
o ardor
bebo café, continuarei a bebê-lo até
que o poema resgate o belo que há, que houve
na vida, até ser dia, até que se britem
os estuporados átomos da melancolia, até ser leda
a luz que atravessa a forma informe das palavras, até
o café frio mais não ser do que o nosso
próprio sangue caindo em nós,
muito de cima, muito dentro, sem
amparo…
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