Da consolação

Massimiliano Mancini
Fotografia de Massimiliano Mancini

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DA CONSOLAÇÃO

Sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir ao seu poder só me tenho a mim. O que já não é pouco.
Stig Dagerman

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às vezes nada resta senão convidar-nos à tarde para um café.
o interior da chávena, umbigo do mundo, revela
mensagens secretas que o tempo aclara

traz-nos à superfície amigos de infância, colegas
da faculdade, livros que um dia lemos obliquamente
e que foram escritos para a nossa catarse

fazemo-nos acompanhar da solitude, 
da dureza do mármore das mesas que, como carne intrépida,
nada têm a esconder de nós

às vezes nada resta sobre o tampo imaculado, a não ser
essas moedas tristes, contadas,
como palavras que guardam o pouco sol da nossa consolação

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Logótipo Oficial 2024

Solstício

Jörg Peter
Fotografia de Jörg Peter

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SOLSTÍCIO

nesse ano o quinquilheiro não apareceu.
esperámos por ele como se espera um dia de sol,
como se aguarda uma notícia vinda de França,
como se adivinha uma ninhada de pintos por Santo António

mas nem sinal da furgoneta,
da buzina de fole,
das ferragens batendo umas nas outras

a minha mãe contava comprar-lhe, se não me engano, um alguidar de cobre.
via-o já polido e brilhante, arrubinado, como a cor de um arrebol
um pouco antes do dia e do anoitecer

o adro encheu-se de gente,
uns para trazer, outros para levar bugigangas,
mas o descarado não veio

a luz foi minguando, até que os que ali restavam mal se viam uns aos outros.
por fim também eles debandaram.
só um cachorro sem dono ficou,
aninhado sob os braços do grande damasqueiro do padre Francisco

o inverno entrou pelos portões do cemitério

mortas de desgosto, as ervas tombavam no intervalo das pedras.
a tremer, coberto pelas finas camadas do frio, abri a porta de casa

vadio como era, também eu aluía nas pernas

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Consoada

Casa em ruínas.
Fotografia de Sven Fennema

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CONSOADA

num canto penumbroso da casa Ziro observava-se diante um espelho antigo
estremecendo à passagem do ar frio pelas frinchas

os meus avós viveram aqui

a lareira mascarrada sem fogo com os tijolos à mostra
não convencia ninguém,
nem ela, nem as janelas presas por arame, desvidradas

só as silvas, com as suas línguas
farpadas, arrepiavam:
mal os conheci.
esta noite seremos só eu e a minha mãe

havia restos da telha por toda a parte.
com os cacos desenhávamos cruzes no chão

no meio do entulho esmagado rebentavam
pés de azevinho

como podia o visqueiro nascer ali
era uma boa pergunta,
era uma excelente pergunta

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Aldeia

Rebecca Prest
Fotografia de Rebecca Prest

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ALDEIA

Toninho vendeu-me três ovos sarapintados
por trinta escudos

negociei-os eu uma manhã, a custo, aos sussurros, entre contas de tabuada

o sol entrava pelos janelões e fazia suspirar

quando cheguei a casa, o avô atirou-se-me às orelhas
por causa deles

eram três ovos de escrevedeira, ainda quentes,
belos como eu e as minhas irmãs juntos!

fomos à procura do ninho e descobrimo-lo,
com a ajuda de Mitrino

depois o avô levou-me pela mão até às videiras,
o podão na ilharga,
as fitas do canavial presas ao cinto como espadas

um e outro caminhámos sem pressa, de cepa em cepa,
duas sombras ao fundo da paisagem,
luminosos como agriões na água

não dissemos palavra,
nem o ranger das botas se ouvia

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Casa velha

Fotografia de Bragi Ingibergsson
Fotografia de Bragi Ingibergsson

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CASA VELHA

é nos sonhos que a casa regressa: as teias de aranha ensarilhadas nas vigas, as mascarras nas paredes tocadas pelo lume, o pó sobre os móveis e na face dos vidros, o cotão a dançar por baixo das camas, a borra caindo devagar no fundo das cafeteiras

à porta da cozinha vejo de novo os pedaços de abóbora e as cascas de batata. mãos diligentes virão com eles preparar a lavadura dos porcos

em baixo, na terra batida, ficam os galinheiros, o estábulo, a pocilga. é o reino da penumbra e do frio, o reino das alfaias e dos lagares, o reino do medo: aqui todos comem em silêncio: os pintos, os vitelos, os bácoros, os roedores, os escaravelhos, a própria morte

é neste saibro que os sonhos me doem sempre mais, como se não soubesse como limpar-me de toda esta memória repleta de dor e de esterco. a ele regresso todas as noites no corpo de uma criança, ou no corpo de um desses mortos que não perdoam, para vaguear à toa entre paredes que não existem já, entre quartos e desvãos e caves (creio-o) que não desaparecerão nunca

fev. 2020

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Para escutar no YouTube

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