CONSOADA

Casa em ruínas.
Fotografia de Sven Fennema

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CONSOADA

num canto penumbroso da casa, Púlcreo observava-se diante
um espelho antigo, estremecendo
à passagem do ar frio
pelas frinchas

os meus avós viveram aqui

a lareira mascarrada, sem fogo, com os tijolos à mostra
não convencia ninguém.
nem ela, nem as janelas presas por arame, desvidradas

só as silvas, com as suas línguas
farpadas, arrepiavam

mal os conheci.
esta noite seremos só eu e a minha mãe

havia restos da telha por toda a parte.
com os cacos desenhávamos cruzes no chão.
no meio do entulho esmagado rebentavam
pés de azevinho –
como podia o visqueiro nascer ali
era uma boa,
era uma excelente pergunta

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ENTRE A PRIMAVERA E O VERÃO

Rudy and Peter Skitterians
Fotografia de Rudy and Peter Skitterians (Pixabay)

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ENTRE A PRIMAVERA E O VERÃO

os meus sobrinhos são o mais parecido que tenho
com a minha infância

gosto deste tempo,
do perfume venturoso das ervas frescas,
do modo como as manhãs nos ressuscitam das noites insones
e do torpor.
gosto deste sol que rutila numa parte da montanha
e torna mais vívidos os lugares da água,
da vermelhidão dos cravos,
dos olhos dos pássaros,
de tudo

os meus sobrinhos brincam no pátio, alteiam a voz,
imitam a imensidão dos gatos

pedem-me às vezes uma história,
pedem que lhes faça pendular o baloiço,
que inculque no seu tempo um lugar novo, indecifrável

entre a primavera e o verão – é aí que encontro
o meu próprio eu,
a minha secreta preferência pelas coisas,
a minha plenitude

a água corre ao tanque
e os pardais lavam o ar com o seu labor incessante.
olho as cerejas e os morangos entre as folhas
e os meus sobrinhos sorriem comigo

é aí, algures no quintal – é aí
que encontro esse bem que tão bem conheço
e de que tão pouco (ainda hoje) posso ou sei dizer

a infância é a melhor definição do amor

afortunado quem assim a descortina,
cismando nas crianças que brincam
sem ideia da luz
que ao redor de si e dos outros fazem transbordar
absolutamente álacre e limpa

21.06.2022