Felicidade

Coffee Jan van der Linden
Fotografia de Jan van der Linden

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FELICIDADE

talvez não reste grande coisa,
talvez pouco mais do que a chávena de café,
as seis suítes de Bach,
o modo como o sol tardio nos vem acender sem pânico
um cigarro esquecido na boca,
a certeza de que agora, nel mezzo del camin, somos sinceros
como um espirro

restam-nos talvez migalhas, bugigangas, pequeníssimas porções
de luz.
tornámo-nos a bem dizer ladrões,
larápios do instante:
cada dia é uma casa nos subúrbios,
um corredor labiríntico,
um cofre complicado que precisamos de estudar

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As coisas olhadas ao perto

Ina Hoekstra
Fotografia de Ina Hoekstra

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AS COISAS OLHADAS AO PERTO

a ponta da lapiseira, o número π nas gotas petrificadas da chuva,
uma árvore, duas árvores, três árvores, um bosque
aparecendo na neblina, desaparecendo na neblina,
silogismos de Anaxágoras, uma colher de mel, o toque do telefone

ninguém em casa parece importar-se, sequer escutar a distância:
pela mesma janela aberta toda a urgência se dissipou.
no seu lugar um concerto de aromas outoniços,
o chilreio dos últimos pássaros (a quem presto vassalagem)

por fim também a eletrostática se cala, os pensamentos também.
o silêncio olhado ao perto é uma flor de muitas salas,
escadarias, móveis, divisões subterrâneas, amplos jardins envelhecidos,
uma casa às escuras depois de acendermos o fósforo

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Paisagens de outono

Paisagem de outono com teia de aranha.
Fotografia de Adina Voicu

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PAISAGENS DE OUTONO

talvez uma aranha negra se passeie pelo trapézio das estrelas.
patas de veludo poliram o firmamento neste mês de outubro:

antigas constelações rebrilham como lentos castiçais

os meus olhos, presos ao sortilégio da teia, pensam
nos teus próprios olhos, na água tépida que os faz descer à terra
quando a fadiga ordena que assim seja

a pequena tromba do poema filtra a luz dos frutos,
rigorosa probóscide, de tronco em tronco, todas as manhãs

sumarentas peras, figos, uvas carnudas, dióspiros:

não possuímos nome para estes meses de agora, mas árvores sim,
árvores com o quilate do mel coroando-se no silêncio

meio-dia: silêncio.
meticulosamente guardamo-lo nos frascos de compota

a doçura do sol torna-o líquido (e precioso),
como o ouro limpo de um lingote

depois, à tarde,
recosto-me numa cadeira de vime, por dentro das cortinas

escuto a paz,
escuto-a atentamente, como se o fizesse com os longos músculos vibrantes
de uma peça de Bach

ao longe rebanhos, chocalhos dispersando

como descobrirá a noite o caminho de regresso por entre
as colunas de fumo?

a murta desenha um retângulo ao redor dos meus pés.
como as sombras de um jardim, não passarei
para lá do meu próprio corpo

meia-noite:

cavilhas de um aço eternamente novo pregadas ao cosmo:
com as estrelas construo o meu alpendre

como sucede nos concursos de teatro amador, elas
são um o melhor espetáculo, porém ninguém as espreita

outubro de 2013

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O mar

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Fotografia de Seamus Rilley

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O MAR

é nos rochedos que entra o mar
(água dura em pedra mole),
entra pelos olhos de mistura com o vento,
insidioso, vivo, cavitante,
entra na memória,
entra nas tardes secretas em que juntávamos
as mãos, a boca, tudo

entra e sai, cheio de espuma,
cheio de nada

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Orpheu sobre Eurídice

Jean Delville, A Morte de Orfeu, 1893
Jean Delville, A Morte de Orfeu, 1893

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ORPHEU, SOBRE EURÍDICE

não é a morte a que tu receias,
mas a luz,
a lâmpada que te consome a nervura do olhar
e branca te anoitece,
como o pavor dos cegos
e dos ofuscados

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Odisseia

Johann Heinrich Wilhelm Tischbein, Ulisses e Penélope (1802)
Johann Heinrich Wilhelm Tischbein, Ulisses e Penélope (1802)

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ODISSEIA

1.
REGRESSO DE ULISSES, O TOLO

minha velha, não esperasses tanto por mim.
trouxe do mar esta cegueira do sargaço
e o cancro da próstata,
trouxe as cinzas que as ninfas e as sereias
(e a aranha negra de Ogígia)
içaram em mim

viajei por quantas camas insulam o Mediterrâneo
e nem tu nem eu temos culpa ou salvação

Telémaco, tão criança é ele ainda e tão forte já

envelheceu o arco que me arremessa a pique
nestas escarpas de búteos e oliveiras escassas

lá em baixo é a espuma que me mata.
disse-te que quero morrer?

fica pois tecendo, rainha inútil!
é de escolhos que a vida se faz,
vinte anos de ardimento roem até ao osso
e depois mais nada, só a doença, só a ilha despida,
só a memória voando e voando até soçobrar
ou alguém fazer com ela uma epopeia,
e mentir, mentir, mentir

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2.
DIRIGE-SE PENÉLOPE A ULISSES

na verdade, nem sei se te amo:
talvez te ame como às cabrinhas,
tão inofensivas primeiro e depois não.
talvez te deseje no mesmo ergástulo

desces a encosta com o teu antigo chocalho,
sinto-te aproximar
(agora humilde, antes não),
e eu acaricio-te o dorso,
conto os dias que faltam
(a minha vingança,
este lampejo indefinido de mulher que sou até às entranhas),
para te sorrir
e apunhalar no cachaço

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«A assim chamada vida» (Czesław Miłosz)

Life, Vida, Vita, Vie
Fotografia de Wolfgang Hasselman

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«A ASSIM CHAMADA VIDA» (CZESŁAW MIŁOSZ)

a assim chamada vida,
– isto é, o eu, o nós, a existência periclitante dos seres que nascem,
agem, poisam um seu lugar no mundo –
tem tudo para falhar

a escassez de água, o excesso de temperatura, a luz inóspita,
mas também a chusma infindável de causas fortuitas,
o erro na fecundação, a doença congénita, o meteoro assassino,
mas também o acidente de comboio, a queda fatal da árvore,
o mergulho fora de horas na piscina,
mas também a boca do déspota beligerante, a marcha da soldadesca,
o gargalo dos canhões

mas também as pragas bíblicas, as carnificinas homéricas,
as células cancerígenas

mas igualmente o desaire do jovem Werther,
a assincronia fatal de Romeu e de Julieta,
o desgosto inquantificável de Anna Karénina

mas igualmente o espaço e o tempo,
a disposição do deus arbitrário das bênçãos e das misérias,
o deus das promessas ditosas e das falas funestas,
o deus-sincrético, o deus uno, o deus panteísta,
o deus-amor, o deus violento, o do silêncio

mas igualmente o antes, o logo depois e o durante

a assim chamada vida cambaleia, rasteja, suplica às vezes,
às vezes renasce inesperadamente, prolifera, fagocita,
suspende-se a si mesma,
devora-se a si própria,
apavora-se consigo a sós,
aniquila os fracos, exubera entre os absurdos,
transmite-se como uma carta em segredo no interior do castelo

a assim chamada vida
– ou seja, o ornitorrinco, os protozoários, as praias da Polinésia,
o adágio de Barber, os azuis de Klein, a beterraba,
a Estrela da Morte, as estrelas Michelin, a estrela da beladona –
é uma versão da lotaria,
um algarismo algures entre o vermelho e o negro
de todas as formas imensas da sorte ou do infortúnio

a assim chamada vida
– que prodígio, que milagre –
tem tudo para falhar
e, no entanto, triunfa, triunfou sempre, leitor!

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