Solstício

Jörg Peter
Fotografia de Jörg Peter

.

SOLSTÍCIO

nesse ano o quinquilheiro não apareceu.
esperámos por ele como se espera um dia de sol,
como se aguarda uma notícia vinda de França,
como se adivinha uma ninhada de pintos por Santo António

mas nem sinal da furgoneta,
da buzina de fole,
das ferragens batendo umas nas outras

a minha mãe contava comprar-lhe, se não me engano, um alguidar de cobre.
via-o já polido e brilhante, arrubinado, como a cor de um arrebol
um pouco antes do dia e do anoitecer

o adro encheu-se de gente,
uns para trazer, outros para levar bugigangas,
mas o descarado não veio

a luz foi minguando, até que os que ali restavam mal se viam uns aos outros.
por fim também eles debandaram.
só um cachorro sem dono ficou,
aninhado sob os braços do grande damasqueiro do padre Francisco

o inverno entrou pelos portões do cemitério

mortas de desgosto, as ervas tombavam no intervalo das pedras.
a tremer, coberto pelas finas camadas do frio, abri a porta de casa

vadio como era, também eu aluía nas pernas

.

Cinzas

Andreas Lischka - wood
Fotografia de Andreas Lischka

.

CINZAS

para Amélia Pereira, minha avó

.

o cheiro das cinzas é quase
tão indecifrável quanto
a efusão da tinta.
com elas escrevemos
não palavras, mas o silêncio,
não a manhã, mas memórias,
não o fim, mas um rosto –
também ele impossível
de dizer,
seja de que forma for

.

No centenário de Eugénio de Andrade

Foz do Porto, Portugal
Fotografia de Adri Marie

.

NO CENTENÁRIO DE EUGÉNIO DE ANDRADE

procurava o mar
como quem busca o som de um provérbio
ou o frio de novembro
para no tempo se agasalhar do tempo

a imensidão da água
– o que quer que ela fosse –
era o mais parecido que há
com a eternidade

descobriu-se no areal com a ternura
do peregrino
a quem faltassem motivos
para acreditar

às vezes vinha-lhe aos pés
uma concha náufraga,
quebrada,
moribunda

e havia nisto um sentido,
uma dor escanzelada e aguda, uma metáfora:
algo lhe mostrava alguém,
alguém que lhe repetia algures estou aqui, estou aqui

19.01.2023

.

Pelas frinchas da garagem

Antiga oficina. Antiga garagem.
Fotografia recolhida na plataforma Pixabay

.

PELAS FRINCHAS DA GARAGEM

pelas frinchas da garagem
entram os dedos da lua

depois é um eco de velhas sucatas
adormecidas, cablagens e
candeeiros a petróleo, caixas de
sapatos e bonecos de caco,
coisas dispersas, despejadas pelo
tempo ao acaso através da pele

sem rasto é o cheiro do silêncio,
o rosto que nos pertencia
e hoje não passa de gelo talhado
a esmo, por entre as frestas
da memória

.

Dentro de casa os olhos

Johannes Vermeer, Leitora à janela, ca. 1657
Johannes Vermeer, Leitora à janela, ca. 1657

.

DENTRO DE CASA OS OLHOS

dentro de casa os olhos rodam,
linhas seguras, móveis lisos, corredores e livros,
artefactos,
uma lâmpada

os olhos desventram, procuram

andaimes de vazio, o envelope esgarçado,
a carta, a luz
– olhá-la, que desterro!

.

«Retrato de Louis-François Bertin, 1832», Ingres

Jean_auguste_dominique_ingres-monsieur_bertin
Jean-Auguste Dominique Ingres, Monsieur Louis-François Bertin, 1832

.

«RETRATO DE LOUIS-FRANÇOIS BERTIN, 1832», INGRES

esmaga-nos o peso das mãos abertas,
como se à mistura de vidro, prata, alumínio e água
a voracidade do olhar
se acrescentasse

Paris, abril de 2011

.

Natureza Morta, Chardin

Jean-Baptiste-Siméon Chardin, «Frutas, Jarro e um Copo - Natureza Morta», 1728
Jean-Baptiste-Siméon Chardin, Natureza Morta com Frutas, Jarro e um Copo, 1728

.

NATUREZA MORTA, CHARDIN

água vertida no fundo de um copo, quietíssima,
meia broa rodeada de frutos silvestres ao estilo de Chardin,
todas as impurezas e insetos retirados de cena,
extraídas todas as discrepâncias e traços excessivos,
nenhuma palavra e apesar disso a exatidão,
nenhum movimento e ainda assim constrangido o rosto

hipnotizados pelo instante, pelo apelo do silêncio fulgurante,
estudamos o pequeno esqueleto de cada gesto,
a fulgência inerte do pensamento,
nem um abelhão zumbidor atravessando-se na luz,
nem uma só rasura chicoteando na sombra,
uma natureza morta, nascida em cada ângulo do olhar

.