sobe às vezes de dentro de nós, como por eclusas, a visão esquecida da mesma paisagem. e então o moinho roda, os mortos voltam, o velho passal enche-se de fragrâncias verdes, brotos, frutos. no mesmo lugar onde os herdeiros disputam hoje redes altas de arame o sol perpassa, há vozes, paz, crianças a correr, leves pássaros saltitando, paz
cotos de sabão secando nas margens do tanque,
frascos vazios e teias de aranha no parapeito das janelas,
algum fruto esquecido, triste
até à exaustão
dentro das gavetas naftalina,
peças brancas de linho, cambraias, lenços, os coturnos de lã
a esmo, no remanso de uma caixa de sapatos, os óculos,
os teus alfinetes, retratos ovais cor de sépia,
suponho que duas ou três cartas, não de amor
mas dos filhos no ultramar,
o bilhete de identidade a dizer “vitalício”
alguém juntou tudo à pressa,
fecharam os portões com arame e um cadeado grosso,
puseram à mostra o letreiro, num rabisco gordo,
escarlate
veio da imobiliária uma moça loira, de minissaia
percebia bastante das coisas, torceu o nariz,
disse mais do que uma vez
que não era de esperar grande coisa