As coisas olhadas ao perto

Ina Hoekstra
Fotografia de Ina Hoekstra

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AS COISAS OLHADAS AO PERTO

a ponta da lapiseira, o número π nas gotas petrificadas da chuva,
uma árvore, duas árvores, três árvores, um bosque
aparecendo na neblina, desaparecendo na neblina,
silogismos de Anaxágoras, uma colher de mel, o toque do telefone

ninguém em casa parece importar-se, sequer escutar a distância:
pela mesma janela aberta toda a urgência se dissipou.
no seu lugar um concerto de aromas outoniços,
o chilreio dos últimos pássaros (a quem presto vassalagem)

por fim também a eletrostática se cala, os pensamentos também.
o silêncio olhado ao perto é uma flor de muitas salas,
escadarias, móveis, divisões subterrâneas, amplos jardins envelhecidos,
uma casa às escuras depois de acendermos o fósforo

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Paisagens de outono

Paisagem de outono com teia de aranha.
Fotografia de Adina Voicu

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PAISAGENS DE OUTONO

talvez uma aranha negra se passeie pelo trapézio das estrelas.
patas de veludo poliram o firmamento neste mês de outubro:

antigas constelações rebrilham como lentos castiçais

os meus olhos, presos ao sortilégio da teia, pensam
nos teus próprios olhos, na água tépida que os faz descer à terra
quando a fadiga ordena que assim seja

a pequena tromba do poema filtra a luz dos frutos,
rigorosa probóscide, de tronco em tronco, todas as manhãs

sumarentas peras, figos, uvas carnudas, dióspiros:

não possuímos nome para estes meses de agora, mas árvores sim,
árvores com o quilate do mel coroando-se no silêncio

meio-dia: silêncio.
meticulosamente guardamo-lo nos frascos de compota

a doçura do sol torna-o líquido (e precioso),
como o ouro limpo de um lingote

depois, à tarde,
recosto-me numa cadeira de vime, por dentro das cortinas

escuto a paz,
escuto-a atentamente, como se o fizesse com os longos músculos vibrantes
de uma peça de Bach

ao longe rebanhos, chocalhos dispersando

como descobrirá a noite o caminho de regresso por entre
as colunas de fumo?

a murta desenha um retângulo ao redor dos meus pés.
como as sombras de um jardim, não passarei
para lá do meu próprio corpo

meia-noite:

cavilhas de um aço eternamente novo pregadas ao cosmo:
com as estrelas construo o meu alpendre

como sucede nos concursos de teatro amador, elas
são um o melhor espetáculo, porém ninguém as espreita

outubro de 2013

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Impressões de outono

Outono . Autumn . Otoño
Fotografia de Janek Sedlar

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IMPRESSÕES DE OUTONO

a tarde bate em retirada ao longo da várzea. no seu lugar, escondido no bosque e nas primeiras trevas – sorrateiro como as fundações de um moinho – o som velho das gralhas. musgo e fungos trepam desde as folhas secas, carvalhos leprosos abrem longos dedos decrépitos até aos derradeiros fiapos de luz que vazam a copa engastalhada e descem à linha reta composta por todos os troncos. em breve por aqui passarão as sombras. o frio pole as pedras, pole os perfumes, pole o leito tranquilo sob as águas do ribeiro. a paisagem impõe respeito. íntima do silêncio, ela escreve devagar o seu próprio epitáfio. cada passada no estreito caminho de terra é um convite ao futuro: as botas gravam no lamaçal a nossa biografia. cada vez mais próximos da terra, os ossos pesam sob a arquitrave do pensamento, como obsidianas, as gralhas rasgam de alto a baixo o instante, mostram a clareira do abandono. quem aqui chega há de regressar a lado nenhum. como num sonho, o caminho é sempre em frente até perder-se, até que num lampejo de lucidez alguém nos sacuda e salve de nós mesmos

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Inverno

Fotografia de Martin Rak
Fotografia de Martin Rak

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INVERNO

a estrada vinha ter comigo
e eu conduzia-me vagaroso pelos meus sonhos mais longínquos.
havia charcos, folhas, insetos afogados no alcatrão.
pelo vidro a chuva espiava-me e tinha arrepios

o inverno acabava de transpor a última cancela
na várzea sombria

tudo é metáfora gania o vento

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Outubro

Saskia Dingemans
Fotografia de Saskia Dingemans

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OUTUBRO

no ponto exato do caderno onde deixaste o verão,
o sol é já um deus diminuído e só

outubro é a carne verde dos primeiros dióspiros

se dormes até mais tarde, ao abrires as janelas
vês a coluna de fumo ao longe
erguendo as fogueiras
até ao lugar onde os pássaros fogem

embriagas-te no odor da madeira incinerada,
no cheiro que a terra torna inconfundível
ao vibrar com os pingos
da chuva

no caderno ficou-te o traço firme das certezas

mas na boca agora só a amargura eclode,
só ela como a última cinza arde no corpo de uma vestal

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