Solstício

Jörg Peter
Fotografia de Jörg Peter

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SOLSTÍCIO

nesse ano o quinquilheiro não apareceu.
esperámos por ele como se espera um dia de sol,
como se aguarda uma notícia vinda de França,
como se adivinha uma ninhada de pintos por Santo António

mas nem sinal da furgoneta,
da buzina de fole,
das ferragens batendo umas nas outras

a minha mãe contava comprar-lhe, se não me engano, um alguidar de cobre.
via-o já polido e brilhante, arrubinado, como a cor de um arrebol
um pouco antes do dia e do anoitecer

o adro encheu-se de gente,
uns para trazer, outros para levar bugigangas,
mas o descarado não veio

a luz foi minguando, até que os que ali restavam mal se viam uns aos outros.
por fim também eles debandaram.
só um cachorro sem dono ficou,
aninhado sob os braços do grande damasqueiro do padre Francisco

o inverno entrou pelos portões do cemitério

mortas de desgosto, as ervas tombavam no intervalo das pedras.
a tremer, coberto pelas finas camadas do frio, abri a porta de casa

vadio como era, também eu aluía nas pernas

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Pelas frinchas da garagem

Antiga oficina. Antiga garagem.
Fotografia recolhida na plataforma Pixabay

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PELAS FRINCHAS DA GARAGEM

pelas frinchas da garagem
entram os dedos da lua

depois é um eco de velhas sucatas
adormecidas, cablagens e
candeeiros a petróleo, caixas de
sapatos e bonecos de caco,
coisas dispersas, despejadas pelo
tempo ao acaso através da pele

sem rasto é o cheiro do silêncio,
o rosto que nos pertencia
e hoje não passa de gelo talhado
a esmo, por entre as frestas
da memória

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Este é o feudo do vento

Fotografia de Karsten Wrobel
Fotografia de Karsten Wrobel

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ESTE É O FEUDO DO VENTO

este é o feudo do vento.
compassivos os grandes rochedos de granito
oferecem-nos o ventre

pintaremos nesta gruta mãos de ocre amarelo,
de cinza, de sangue.
o azul é mais difícil: será preciso
esmagar o céu, esboroá-lo com raiva

mas isso, isso não nos compete

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Dentro de casa os olhos

Johannes Vermeer, Leitora à janela, ca. 1657
Johannes Vermeer, Leitora à janela, ca. 1657

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DENTRO DE CASA OS OLHOS

dentro de casa os olhos rodam,
linhas seguras, móveis lisos, corredores e livros,
artefactos,
uma lâmpada

os olhos desventram, procuram

andaimes de vazio, o envelope esgarçado,
a carta, a luz
– olhá-la, que desterro!

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Costa do Havre, Monet

Claude Monet, Jardim em Sainte-Adresse, 1867
Claude Monet, Jardim em Sainte-Adresse, 1867

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COSTA DO HAVRE, MONET

da sujidade das sombras e da inclemência do vazio,
também nós fugimos ao domingo
para esse terraço de Sainte-Adresse sobre
o mar

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«Retrato de Louis-François Bertin, 1832», Ingres

Jean_auguste_dominique_ingres-monsieur_bertin
Jean-Auguste Dominique Ingres, Monsieur Louis-François Bertin, 1832

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«RETRATO DE LOUIS-FRANÇOIS BERTIN, 1832», INGRES

esmaga-nos o peso das mãos abertas,
como se à mistura de vidro, prata, alumínio e água
a voracidade do olhar
se acrescentasse

Paris, abril de 2011

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