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LAVANDA-DO-MAR
sobre a mesa a lavanda-do-mar era branca e amarela,
às vezes roxa e encarnada
tudo convergia para si, como quando alguém
pigarreia e quer falar

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FELICIDADE
talvez não reste grande coisa,
talvez pouco mais do que a chávena de café,
as seis suítes de Bach,
o modo como o sol tardio nos vem acender sem pânico
um cigarro esquecido na boca,
a certeza de que agora, nel mezzo del camin, somos sinceros
como um espirro
restam-nos talvez migalhas, bugigangas, pequeníssimas porções
de luz.
tornámo-nos a bem dizer ladrões,
larápios do instante:
cada dia é uma casa nos subúrbios,
um corredor labiríntico,
um cofre complicado que precisamos de estudar
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AS COISAS OLHADAS AO PERTO
a ponta da lapiseira, o número π nas gotas petrificadas da chuva,
uma árvore, duas árvores, três árvores, um bosque
aparecendo na neblina, desaparecendo na neblina,
silogismos de Anaxágoras, uma colher de mel, o toque do telefone
ninguém em casa parece importar-se, sequer escutar a distância:
pela mesma janela aberta toda a urgência se dissipou.
no seu lugar um concerto de aromas outoniços,
o chilreio dos últimos pássaros (a quem presto vassalagem)
por fim também a eletrostática se cala, os pensamentos também.
o silêncio olhado ao perto é uma flor de muitas salas,
escadarias, móveis, divisões subterrâneas, amplos jardins envelhecidos,
uma casa às escuras depois de acendermos o fósforo
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PAISAGENS DE OUTONO
talvez uma aranha negra se passeie pelo trapézio das estrelas.
patas de veludo poliram o firmamento neste mês de outubro:
antigas constelações rebrilham como lentos castiçais
os meus olhos, presos ao sortilégio da teia, pensam
nos teus próprios olhos, na água tépida que os faz descer à terra
quando a fadiga ordena que assim seja
•
a pequena tromba do poema filtra a luz dos frutos,
rigorosa probóscide, de tronco em tronco, todas as manhãs
sumarentas peras, figos, uvas carnudas, dióspiros:
não possuímos nome para estes meses de agora, mas árvores sim,
árvores com o quilate do mel coroando-se no silêncio
•
meio-dia: silêncio.
meticulosamente guardamo-lo nos frascos de compota
a doçura do sol torna-o líquido (e precioso),
como o ouro limpo de um lingote
•
depois, à tarde,
recosto-me numa cadeira de vime, por dentro das cortinas
escuto a paz,
escuto-a atentamente, como se o fizesse com os longos músculos vibrantes
de uma peça de Bach
ao longe rebanhos, chocalhos dispersando
como descobrirá a noite o caminho de regresso por entre
as colunas de fumo?
•
a murta desenha um retângulo ao redor dos meus pés.
como as sombras de um jardim, não passarei
para lá do meu próprio corpo
•
meia-noite:
cavilhas de um aço eternamente novo pregadas ao cosmo:
com as estrelas construo o meu alpendre
como sucede nos concursos de teatro amador, elas
são um o melhor espetáculo, porém ninguém as espreita
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ODISSEIA
1.
REGRESSO DE ULISSES, O TOLO
minha velha, não esperasses tanto por mim.
trouxe do mar esta cegueira do sargaço
e o cancro da próstata,
trouxe as cinzas que as ninfas e as sereias
(e a aranha negra de Ogígia)
içaram em mim
viajei por quantas camas insulam o Mediterrâneo
e nem tu nem eu temos culpa ou salvação
Telémaco, tão criança é ele ainda e tão forte já
envelheceu o arco que me arremessa a pique
nestas escarpas de búteos e oliveiras escassas
lá em baixo é a espuma que me mata.
disse-te que quero morrer?
fica pois tecendo, rainha inútil!
é de escolhos que a vida se faz,
vinte anos de ardimento roem até ao osso
e depois mais nada, só a doença, só a ilha despida,
só a memória voando e voando até soçobrar
ou alguém fazer com ela uma epopeia,
e mentir, mentir, mentir
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2.
DIRIGE-SE PENÉLOPE A ULISSES
na verdade, nem sei se te amo:
talvez te ame como às cabrinhas,
tão inofensivas primeiro e depois não.
talvez te deseje no mesmo ergástulo
desces a encosta com o teu antigo chocalho,
sinto-te aproximar
(agora humilde, antes não),
e eu acaricio-te o dorso,
conto os dias que faltam
(a minha vingança,
este lampejo indefinido de mulher que sou até às entranhas),
para te sorrir
e apunhalar no cachaço
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