atravesso as dunas, a lenta oscilação da cor, o vento,
o áspero rancor das areias, os rizomas secos,
atravesso a sombra inócua dos meus passos submersos,
o esquivo lugar que caldeia o sangue e me chama pelo nome,
atravesso formas de tinta, borrões, elegíacas borboletas
zarpando da cabeça em direção ao nada,
atravesso lunações, lucivelos, lágrimas que tudo subtraem à luz,
atravesso os fundos granitos da água como um barco,
atravesso a alta ruína que estremece com todo o medo
e sou dia e noite nos interstícios dos equinócios
e sou uma dor crescente,
atravesso o silêncio, a frívola armação em esqueleto das ideias,
atravesso-me como um inseto, como pó vazando as cavidades,
atravesso o sensível vazio que se antecipa ao varrer do vento,
as dunas, a máquina do silêncio, a dicotomia da morte,
atravesso o poema, a semântica, a cinza que dele em breve
há de restar no lugar do lume,
atravesso o meu próprio arrepio de me saber nada,
absolutamente nada, nem a memória de nada, nada, nada,
e depois calo, desofego, imobilizo-me,
sou um ponto amarfanhado no chão, depois nem isso,
depois, em última análise, nem a memória desse esquecimento
E que há de mais livre que o que nada deseja neste mundo?
Tomás de Kempis, Imitação de Cristo
.
nunca é tarde demais.
procura a força do deserto, a distância,
procura a luminosidade dos grãos movediços e duros,
o adobe,
o cheiro das dunas,
o vento dobrando-se no erg,
procura-te na voz do nazareno,
na secura dos essénios,
na abstinente leveza dos berberes de túnica azul
nunca é tarde demais.
despoja-te do tempo e do espaço, despe-te da sombra e da luz.
nada existe no mundo que seja maior,
ou mais do que tu
Filippo Lippi, Madona com Menino e dois anjos, c. 1465
.
DA LUZ
foi indubitavelmente numa manhã assim
nascida da indulgência da luz
sem vafrícia,
sem balofice,
sem unhas iníquas na sombra,
que Vilhelm Hammershøi pintou
o que também nos seus retratos viu Vermeer
ou o que no rosto de Lucrezia Buti atingiu Fra Filippo Lippi
não tocamos as coisas,
somos antes tocados pelo movimento leve e sereno
que entre elas e nós
é a profundidade tangencial do espírito
ou, dito de outro modo,
é o nosso olhar reconciliado com a lente do poema
então de súbito o sol aclara o vidro opaco
e enche de silêncio o espaço.
é um sinal de que talvez dias mais propícios nos aguardem à puridade
e de que talvez nos encontrem numa plataforma confusa
onde comboios param e partem a toda a hora,
de que talvez esses dias fastos nos coloquem a mão sobre o ombro
e conheçam o nosso nome,
e de que então de súbito saibamos exatamente quem somos,
iluminados por uma paz em tudo igual a esta paz,
igual à que nos frescos de Pompeia e de Herculano produzem
o vermelho-cinábrio e o ocre e o azul,
igual à que possuem certas palavras quando numa manhã anódina,
numa manhã como esta, escambrando o céu sobre o Lago Lucerna,
alguém as murmura com amor, sem pressa, ao nosso ouvido
já sabes onde me encontrar: no sítio onde o génio e o imbecil trocam de posição e às vezes pelejam, como dois garotos no recreio. terei nas mãos os mesmos dedos, mais queimados pelo cigarro. usarei o casaco elegante que me ofereceste, quando não tinha outro. prometo não dececionar-te: repetirei a história de Tristão e Isolda de que tanto gostas, ou a triste sina de algum novo compositor, ou alguma coscuvilhice erudita entre as nove filhas de Mnemósine
não me peças explicações nem me dês conselhos: sempre detestei a verdade
prefiro que abras as janelas para o sol entrar, ou me tragas a quieta poesia de um ramo de malmequeres
não sou ambicioso: sabes que nunca fui. basta-me o amor sincero, a beleza de Bach e o teu corpo no lugar onde (por muitas fogueiras que ardam) jamais conseguirei aquecer-me
não é esse o poema que eu quero,
mas aceito esta paisagem agreste que o sol incessantemente acutila
(mesmo à noite, mesmo entre as páginas devidas por Homero aos deuses da Ática,
mesmo quando sobem pelo cachimbo pequenas labaredas esperançosas),
aceito estas moscas tresloucadas de cor azul
e aceito o ardimento conjunto dos olhos e dos lábios e da nostalgia de agosto,
aceito este pó rebatendo mais em desespero no pórfiro das velhas colunas quebradas
e aceito a solidão dos metrosíderos em cujo tronco de escamas me deito às vezes,
aceito as minhas próprias cáligas quase desfeitas
e o meu gládio vencido por fim pelo vermelho da ferrugem
não me perguntes, amor, que poema é esse que eu quero,
verás como se transformam as lagartas em asas e como nos abandonam,
como caem entre as pedras da calçada as rudes cabeças daninhas das ervas
(e como germinam contra nós os silêncios de que gostam as ervas),
verás como todos os impérios se cansam do imperativo modo de prevalecer
e como os próprios deuses de Homero se calaram e esqueceram do ofício dos aedos
e como este mar e esta terra nos sepultam no devido tempo a nós devido
não perguntes.
jamais saberei dizer-te como dói falhar o poema,
como se contorce no mais principal de nós a profunda dor do incumprimento,
essa que leva o pescador Aónio para casa, erguida num graveto
(esse peixe-outro, insípido, praticamente ridículo),
essa dor de Tétis morto Aquiles diante dos seus maravilhados olhos tristes
e dos seus selados lábios e da sua nostalgia de mãe-agosto-para-sempre
não me perguntes, meu amor.
não saberia responder-te