Enfarna

enfarna, flor de oliveira, primavera, verão
Fotografia de Josevi Parra

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ENFARNA

lia um poema de Tassos Denegris,
a terra era seca,
as oliveiras floridas mostravam
como se pode e como se deve.
o sol empunhava a mão
contra as pedras,
havia um aroma subtil
no pó.
as metáforas faiscavam em pouco
e calavam-se:
enfarna era a palavra,
a palavra que me seduzia

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Será sempre uma espécie de prólogo

Old house, in ruins. Maison ancienne, en ruine. Vecchia casa, in rovina. Casa antigua, en ruinas. 古い家、廃墟。
Fotografia de Dimitris Vetsikas

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SERÁ SEMPRE UMA ESPÉCIE DE PRÓLOGO

silêncio, a casa esquecida, o olhar
em fuga pelas paredes sem cal,
vigas a céu aberto, a cauda
dos astros,
estalidos, o chão
o chão sem fundo sobre os abismos da terra

permanecem aí numa dignidade de
aristocratas defuntos
as memórias e o amor, a solidão
e o caruncho

silêncio sim, os escombros – por assim dizer –
de uma fé antiga e abandonada

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Um dia concreto

Kari Shea - couch
Fotografia de Kari Shea

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UM DIA CONCRETO.

perguntaram a Ludwig Wittgenstein se aquele era um dia concreto

o que é um dia concreto?
o que é a porra de um dia concreto?

nunca soube a resposta que deu o austro-inglês

um dia concreto.
concreto como um campo de cizânia ou de cicuta à nossa frente.
concreto como Tōru Takemitsu em Nostalghia.
concreto como o cheiro da serralha ou de uma cebola ou do chewing gum na tua boca.
concreto como um copo de água sobre a mesa

um dia concreto como estar acordado diante de um grande relógio de parede.
como olhar nos olhos os olhos que nos olham ao espelho

um dia concreto como sentir ardor na bexiga.
como ter uma pedra a rolar entre os dedos

um dia concreto como tossir sem blandícia por causa do pó.
como escrever numa folha interminável a sequência de Fibonacci.
como apalpar um traseiro.
como sentir o estrugido a queimar

um dia passado entre o frio mistral do vento e o abrasador da luz.
um dia concreto.
a escutar grilos ou a limpar ramelas.
concreto como fazer uma salada com escarolas ou rúcula ou alface.
como ler de pé Bernardo Atxaga ou Philip Levine.
ou fumar uma imitação barata de um Cohiba.
como vilipendiar alguém ao telefone por causa do condomínio

um dia concreto.
concreto como todos os dias concretos, cheios de pressa e de vagar,
mãos nos bolsos, nas luvas, na pele,
prontas a segurar o caderno e a estropiar mais um poema

um dia concreto como amar as Quatro Estações de Vivaldi
e não ter mais que dizer.
concreto como ter a barba crescida e nenhuma lâmina ou sabão em casa,
nem vontade para escanhoar o atordoado rosto, quase de novo infantil.
concreto como a autocomiseração.
como ouvir na rádio a Quarta de Brahms conduzida por Bernstein.
concreto como uma maçã, ao contrário, obclávea, tonta.
como o gemido súcubo dentro da faca que a corta em dois e em quatro.
concreto como levar um murro ou um par de cornos
e andar semanas, magoadamente, a cair sobre os ossos.
concreto como sacos de lona às costas de um farrapeiro.
como o fedor de um animal em decomposição sobre o asfalto.
concreto como o reflexo da chuva e o peso de um beijo sobre as faces

voltemos, portanto, ao começo:
perguntaram a Wittgenstein, creio que foi Russell quem o fez,
enquanto alambazava o cachimbo

o que é para si um dia concreto?

um indagava no putativo hipopótamo escondido entre os móveis da sala.
o outro meditava em matéria e antimatéria, na carta que haveria de escrever
a Niels Bohr

o que é para si um dia concreto?

era uma conversa fiada, de filósofos.
a nenhuma conclusão chegaram, como é fácil, aliás, de suspeitar

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Pelas frinchas da garagem

Antiga oficina. Antiga garagem.
Fotografia recolhida na plataforma Pixabay

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PELAS FRINCHAS DA GARAGEM

pelas frinchas da garagem
entram os dedos da lua

depois é um eco de velhas sucatas
adormecidas, cablagens e
candeeiros a petróleo, caixas de
sapatos e bonecos de caco,
coisas dispersas, despejadas pelo
tempo ao acaso através da pele

sem rasto é o cheiro do silêncio,
o rosto que nos pertencia
e hoje não passa de gelo talhado
a esmo, por entre as frestas
da memória

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Dentro de casa os olhos

Johannes Vermeer, Leitora à janela, ca. 1657
Johannes Vermeer, Leitora à janela, ca. 1657

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DENTRO DE CASA OS OLHOS

dentro de casa os olhos rodam,
linhas seguras, móveis lisos, corredores e livros,
artefactos,
uma lâmpada

os olhos desventram, procuram

andaimes de vazio, o envelope esgarçado,
a carta, a luz
– olhá-la, que desterro!

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Costa do Havre, Monet

Claude Monet, Jardim em Sainte-Adresse, 1867
Claude Monet, Jardim em Sainte-Adresse, 1867

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COSTA DO HAVRE, MONET

da sujidade das sombras e da inclemência do vazio,
também nós fugimos ao domingo
para esse terraço de Sainte-Adresse sobre
o mar

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A amendoeira de Van Gogh

Vincent van Gogh, Amendoeira em Flor (Almond Blossom), 1890
Vincent van Gogh, Amendoeira em Flor, 1890

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A AMENDOEIRA DE VAN GOGH

hoje ao entrar na amendoeira de van Gogh
calei todos os meus impulsos.
o vento era um tudo-nada mais forte,
o branco ardia no azul,
algures evaporava-me

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