Lavra, Matosinhos

ddzphotos
Fotografia de ddz_photo

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LAVRA, MATOSINHOS

regressámos hoje a este lugar pelágico
onde as runas e os líquenes vermelhos cobrem os rochedos,
onde a antiga voz de deus corre às dunas e ao sol
para reencontrar-se com o brilho frágil
das gramíneas

depois que partiste
todo o espaço pareceu encarquilhado e rude.
a miséria da dor afundou-nos os olhos
e silenciou as palavras

porém este lugar acicata.
como um sopro lançado às brasas, faz-nos caminhar
horas infinitas pelos corredores do vento
e com o mar em fundo

voltamos por isso a nós,
renascentes parturidos do âmago do fogo, aos poucos,
de outro tempo, noutro corpo

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Mãe

margaridas
Fotografia de Aaron Burden

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MÃE

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Maria Alice Pereira Costa
08-06-1956 – 21-09-2024
in memoriam

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por muito que o outono nos doa nos olhos
e funda soçobre a vontade,
por muito que de nós se aparte o sorriso
e maior se enegreça o silêncio entre as furtivas horas,
por muito que se esmague contra nós
o peso da memória (amargado pela distância),
teremos sempre esta paz das manhãs,
esta concessão da luz,
este preço limpo dos gestos e palavras
impolutas

para onde tu fores nós iremos, mãe.
por muito que nos fujas,
perseguiremos nós a tua mão

21.09.2024

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Janeiro, memórias

Jean Vandijck - Mill in the fog
Fotografia de Jean Vandijck

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JANEIRO, MEMÓRIAS

sobe às vezes de dentro de nós, como por eclusas, a visão esquecida da mesma paisagem. e então o moinho roda, os mortos voltam, o velho passal enche-se de fragrâncias verdes, brotos, frutos. no mesmo lugar onde os herdeiros disputam hoje redes altas de arame o sol perpassa, há vozes, paz, crianças a correr, leves pássaros saltitando, paz

como nas iluminuras antigas vê-se tudo, tudo

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Consoada

Casa em ruínas.
Fotografia de Sven Fennema

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CONSOADA

num canto penumbroso da casa Ziro observava-se diante um espelho antigo
estremecendo à passagem do ar frio pelas frinchas

os meus avós viveram aqui

a lareira mascarrada sem fogo com os tijolos à mostra
não convencia ninguém,
nem ela, nem as janelas presas por arame, desvidradas

só as silvas, com as suas línguas
farpadas, arrepiavam:
mal os conheci.
esta noite seremos só eu e a minha mãe

havia restos da telha por toda a parte.
com os cacos desenhávamos cruzes no chão

no meio do entulho esmagado rebentavam
pés de azevinho

como podia o visqueiro nascer ali
era uma boa pergunta,
era uma excelente pergunta

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Vende-se

Peter H, abandoned house
Fotografia de Peter H

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VENDE-SE

cotos de sabão secando nas margens do tanque,
frascos vazios e teias de aranha no parapeito das janelas,
algum fruto esquecido, triste
até à exaustão

dentro das gavetas naftalina,
peças brancas de linho, cambraias, lenços, os coturnos de lã

a esmo, no remanso de uma caixa de sapatos, os óculos,
os teus alfinetes, retratos ovais cor de sépia,
suponho que duas ou três cartas, não de amor
mas dos filhos no ultramar,
o bilhete de identidade a dizer “vitalício”

alguém juntou tudo à pressa,
fecharam os portões com arame e um cadeado grosso,
puseram à mostra o letreiro, num rabisco gordo,
escarlate

veio da imobiliária uma moça loira, de minissaia

percebia bastante das coisas, torceu o nariz,
disse mais do que uma vez
que não era de esperar grande coisa

as saudades hoje
estão ao preço da chuva

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