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FÓSFOROS
por alguma razão os fósforos se recusavam
nas noites de lua cheia.
e se insistia em acendê-los o vento levava-os à nascença
como pequenas folhas de ouro, moribundas
e dançantes
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«A ASSIM CHAMADA VIDA» (CZESŁAW MIŁOSZ)
a assim chamada vida,
– isto é, o eu, o nós, a existência periclitante dos seres que nascem,
agem, poisam um seu lugar no mundo –
tem tudo para falhar
a escassez de água, o excesso de temperatura, a luz inóspita,
mas também a chusma infindável de causas fortuitas,
o erro na fecundação, a doença congénita, o meteoro assassino,
mas também o acidente de comboio, a queda fatal da árvore,
o mergulho fora de horas na piscina,
mas também a boca do déspota beligerante, a marcha da soldadesca,
o gargalo dos canhões
mas também as pragas bíblicas, as carnificinas homéricas,
as células cancerígenas
mas igualmente o desaire do jovem Werther,
a assincronia fatal de Romeu e de Julieta,
o desgosto inquantificável de Anna Karénina
mas igualmente o espaço e o tempo,
a disposição do deus arbitrário das bênçãos e das misérias,
o deus das promessas ditosas e das falas funestas,
o deus-sincrético, o deus uno, o deus panteísta,
o deus-amor, o deus violento, o do silêncio
mas igualmente o antes, o logo depois e o durante
a assim chamada vida cambaleia, rasteja, suplica às vezes,
às vezes renasce inesperadamente, prolifera, fagocita,
suspende-se a si mesma,
devora-se a si própria,
apavora-se consigo a sós,
aniquila os fracos, exubera entre os absurdos,
transmite-se como uma carta em segredo no interior do castelo
a assim chamada vida
– ou seja, o ornitorrinco, os protozoários, as praias da Polinésia,
o adágio de Barber, os azuis de Klein, a beterraba,
a Estrela da Morte, as estrelas Michelin, a estrela da beladona –
é uma versão da lotaria,
um algarismo algures entre o vermelho e o negro
de todas as formas imensas da sorte ou do infortúnio
a assim chamada vida
– que prodígio, que milagre –
tem tudo para falhar
e, no entanto, triunfa, triunfou sempre, leitor!
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EM LISBOA, COM TOMAS TRANSTRÖMER
cidade de brancos estendais de roupa e lonas amarelas nas esplanadas,
belos olhos azuis fotografando o rumor dos elétricos, o vazio,
o voo quebrado das gaivotas,
cabos rebocadores da alfândega, andaimes, alvenéis, metáforas,
um milhão de escrupulosas palavras sob as arcadas,
debruns de granito, patas dos pardais, tudo
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ALDEIA
Toninho vendeu-me três ovos sarapintados
por trinta escudos
negociei-os eu uma manhã, a custo, aos sussurros, entre contas de tabuada
o sol entrava pelos janelões e fazia suspirar
quando cheguei a casa, o avô atirou-se-me às orelhas
por causa deles
eram três ovos de escrevedeira, ainda quentes,
belos como eu e as minhas irmãs juntos!
fomos à procura do ninho e descobrimo-lo,
com a ajuda de Mitrino
depois o avô levou-me pela mão até às videiras,
o podão na ilharga,
as fitas do canavial presas ao cinto como espadas
um e outro caminhámos sem pressa, de cepa em cepa,
duas sombras ao fundo da paisagem,
luminosos como agriões na água
não dissemos palavra,
nem o ranger das botas se ouvia
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INVERNO
a estrada vinha ter comigo
e eu conduzia-me vagaroso pelos meus sonhos mais longínquos.
havia charcos, folhas, insetos afogados no alcatrão.
pelo vidro a chuva espiava-me e tinha arrepios
o inverno acabava de transpor a última cancela
na várzea sombria
tudo é metáfora gania o vento
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