Poeta, cronista e contista português, nascido em 1977. Publicou livros de poesia, crónicas e contos. Parte da sua obra literária foi traduzida para castelhano, francês, inglês e servo-croata.
entre as escarpas e os talhões de terra vulcânica, há uma estrada limpíssima a perder de vista, bordejada por um muro contínuo – não muito alto, perfeitamente geométrico – de pedra basáltica. de um lado, em baixo, o oceano com a mansuetude da ilha Graciosa. do outro lado, a terra ocre e os retângulos frisados deste chão de grânulos negros onde os nossos sapatos caminham com dificuldade. ao fundo, a encosta imponente do La Corona. são sete da tarde. o nevoeiro sobe rapidamente do mar, galgando os píncaros e atravessando à nossa frente a estrada de que falo. ocultado e desocultado pelo vapor, o sol deixa tudo a contraluz: e é a beleza das imagens assim nascidas da neblina, a silhueta depurada dos nossos corpos, a distância tão breve do abismo, o som das vozes que aparecem e desaparecem – que se desvanecem ao longo da estrada – é esse instante antes do crepúsculo, acima das origens, tudo o que nos fica
venho aqui com o Nilo muitas vezes, nenhuma igual a todas as outras, sempre à espera que a hora do dia em que vimos traga algum milagre, qualquer coisa que se assemelhe à poesia: pode ser o movimento da lua por entre os ramos dos choupos, o som corrente da água até ao açude e depois dele, o frio súbito que se sente ao atravessarmos a pequena ponte de pedra, a alegria estonteante dos pássaros um pouco antes de cair a noite – melros, pardais, estorninhos, pintassilgos, escrevedeiras, todos juntos, cada qual com o seu particular chilreio, dentro dos velhos muros do passal – eu e o cão, pisando a terra mole que a chuva recentemente empapou, à espera do milagre da poesia que nunca fica por achar
esta é uma transumância pelo tempo. nunca sei em que época da minha vida viajo, nem em que sonhos hei de tropeçar, ou em que versos de alguém aconchegar-me. entramos agora num quelho musgoso, num caminho antiquíssimo – já o era na minha infância – ladeado de altas fileiras de rebos pontiagudos até aos degraus de acesso a uma casa agora em silêncio, outrora vivida e habitada, em cuja eira branquejam ainda as lajes sob o halo do luar, em cujo quintal dão fruto ainda as figueiras e as cerejeiras e abrunheiros repetem a sua flor maravilhosamente alva e delicada, em cujos taludes se iluminam ainda as calêndulas e margaridas-do-campo, a saxífraga, os botões-de-ouro brancos, as quelidónias, a morugem, os olhos-de-gato, os lírios brancos e roxos, os pampilhos, os malmequeres comuns, às tantas as rosas bravas, antes delas os cachos poderosos e perfumados das glicínias
a terra enche-se destas presenças todos os anos, aconteça o que acontecer no mundo, indiferentes à humanidade e ao canídeo truculento, que de vez em quando as mata com urina de macho dominante. e nesta persistência encontro eu o otimismo: nem tudo é mau ou péssimo, há ainda o meu paraíso – pequeno é certo, sazonal é verdade, mas outro virá e eu virei com o Nilo todos os dias ao anoitecer, cansado do mundo e à espera que os pés me ajudem a lembrar quem sou, quem fui, e que um poema chegue ao fim honesto e limpo como esta terra em que nasceu
perguntaram a Ludwig Wittgenstein se aquele era um dia concreto
o que é um dia concreto? o que é a porra de um dia concreto?
nunca soube a resposta que deu o dinamarquês
um dia concreto. concreto como um campo de cizânia ou de cicuta à nossa frente. concreto como Tōru Takemitsu em Nostalghia. concreto como o cheiro da serralha ou de uma cebola ou do chewing gum na tua boca. concreto como um copo de água sobre a mesa
um dia concreto como estar acordado diante de um grande relógio de parede. como olhar nos olhos os olhos que nos olham ao espelho
um dia concreto como sentir ardor na bexiga. como ter uma pedra a rolar entre os dedos
um dia concreto como tossir sem blandícia por causa do pó. como escrever numa folha interminável a sequência de Fibonacci. como apalpar um traseiro. como sentir o estrugido a queimar
um dia passado entre o frio mistral do vento e o abrasador da luz. um dia concreto. a escutar grilos ou a limpar ramelas. concreto como fazer uma salada com escarolas ou rúcula ou alface. como ler de pé Bernardo Atxaga ou Philip Levine. ou fumar uma imitação barata de um Cohiba. como vilipendiar alguém ao telefone por causa do condomínio
um dia concreto. concreto como todos os dias concretos, cheios de pressa e de vagar, mãos nos bolsos, nas luvas, na pele, prontas a segurar o caderno e a estropiar mais um poema
um dia concreto como amar as Quatro Estações de Vivaldi e não ter mais que dizer. concreto como ter a barba crescida e nenhuma lâmina ou sabão em casa, nem vontade para escanhoar o atordoado rosto, quase de novo infantil. concreto como a autocomiseração. como ouvir na rádio a Quarta de Brahms conduzida por Bernstein. concreto como uma maçã, ao contrário, obclávea, tonta. como o gemido súcubo dentro da faca que a corta em dois e em quatro. concreto como levar um murro ou um par de cornos e andar semanas, magoadamente, a cair sobre os ossos. concreto como sacos de lona às costas de um farrapeiro. como o fedor de um animal em decomposição sobre o asfalto. concreto como o reflexo da chuva e o peso de um beijo sobre as faces
voltemos, portanto, ao começo: perguntaram a Wittgenstein, creio que foi Russell quem o fez, enquanto alambazava o cachimbo
o que é para si um dia concreto?
um indagava no putativo hipopótamo escondido entre os móveis da sala. o outro meditava em matéria e antimatéria, na carta que haveria de escrever a Niels Bohr
o que é para si um dia concreto?
era uma conversa fiada, de filósofos. a nenhuma conclusão chegaram, como é fácil, aliás, de suspeitar
Only thehomeless and the really humbled Seem to be sure exactly where they are…
W. H. Auden
alguém disse que o tempo se faz no meio do vácuo, entre dois parêntesis absurdos
as tílias, o canto do chapim, o aroma do funcho são inesperadamente piedosas vírgulas a que nos agarramos num desespero de náufragos e sem sabermos porquê
Fotografia de Rudy and Peter Skitterians (Pixabay)
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ENTRE A PRIMAVERA E O VERÃO
os meus sobrinhos são o mais parecido que tenho
com a minha infância
gosto deste tempo,
do perfume venturoso das ervas frescas,
do modo como as manhãs nos ressuscitam das noites insones
e do torpor.
gosto deste sol que rutila numa parte da montanha
e torna mais vívidos os lugares da água,
da vermelhidão dos cravos,
dos olhos dos pássaros,
de tudo
os meus sobrinhos brincam no pátio, alteiam a voz,
imitam a imensidão dos gatos
pedem-me às vezes uma história,
pedem que lhes faça pendular o baloiço,
que inculque no seu tempo um lugar novo, indecifrável
entre a primavera e o verão – é aí que encontro
o meu próprio eu,
a minha secreta preferência pelas coisas,
a minha plenitude
a água corre ao tanque
e os pardais lavam o ar com o seu labor incessante.
olho as cerejas e os morangos entre as folhas
e os meus sobrinhos sorriem comigo
é aí, algures no quintal – é aí
que encontro esse bem que tão bem conheço
e de que tão pouco (ainda hoje) posso ou sei dizer
a infância é a melhor definição do amor
afortunado quem assim a descortina,
cismando nas crianças que brincam
sem ideia da luz
que ao redor de si e dos outros fazem transbordar
absolutamente álacre e limpa
dificilmente se olvida um gesto de ternura,
um vestido vaporoso correndo
entre ângulos de luz solar ao cair do dia,
ou os cabelos loiros que esvoaçam entre linhas
intermináveis de alfazema florida
dificilmente se esquece o perfume
que em junho ou julho de um ano antigo,
numa aldeia qualquer nos arredores da Provença,
nos prende à substância do amor,
que é como se sabe o oposto da morte
dificilmente se perdoa a nós mesmos
o quilate de uma lembrança assim,
o corpo (leve de anos) correndo atrás daquela
que no campo, envolta em luz, nos foge
rindo, triunfante, para o lado da memória
dificilmente pode alguém imitar o poema
perfeito, ainda que guardando no bolso
alguns restos desse sol, algumas migalhas
dessa brisa, alguns pedaços desse riso,
algumas sobras desse amor com que o escrevias