Outubro

Saskia Dingemans
Fotografia de Saskia Dingemans

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OUTUBRO

no ponto exato do caderno onde deixaste o verão,
o sol é já um deus diminuído e só

outubro é a carne verde dos primeiros dióspiros

se dormes até mais tarde, ao abrires as janelas
vês a coluna de fumo ao longe
erguendo as fogueiras
até ao lugar onde os pássaros fogem

embriagas-te no odor da madeira incinerada,
no cheiro que a terra torna inconfundível
ao vibrar com os pingos
da chuva

no caderno ficou-te o traço firme das certezas

mas na boca agora só a amargura eclode,
só ela como a última cinza arde no corpo de uma vestal

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«Retrato de Louis-François Bertin, 1832», Ingres

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Jean-Auguste Dominique Ingres, Monsieur Louis-François Bertin, 1832

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«RETRATO DE LOUIS-FRANÇOIS BERTIN, 1832», INGRES

esmaga-nos o peso das mãos abertas,
como se à mistura de vidro, prata, alumínio e água
a voracidade do olhar
se acrescentasse

Paris, abril de 2011

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«Compartment C, Car 193 (Edward Hopper)

Edward Hopper, Compartiment Car, 1938
Edward Hopper, Compartment Car, 1938

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«COMPARTMENT C, CAR 193» (EDWARD HOPPER)

oh, a América profunda, essa metáfora que Hopper
tinha no pensamento, quando em 1938 pintou
as entranhas da solidão

quem é essa mulher por quem nos apaixonamos
obliquamente? como dizer não
a esse negro aveludado da roupa ao entardecer?

oh, a América! esse verme gordo engolindo
paisagens! e eu estava dentro dele em 1938, quando
Hopper pintou a minha própria solidão

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