silêncio, a casa esquecida, o olhar
em fuga pelas paredes sem cal,
vigas a céu aberto, a cauda
dos astros,
estalidos, o chão
o chão sem fundo sobre os abismos da terra
permanecem aí numa dignidade de
aristocratas defuntos
as memórias e o amor, a solidão
e o caruncho
silêncio sim, os escombros – por assim dizer –
de uma fé antiga e abandonada
viajo entre ponteiros, sem pressa, oco, engolindo paisagens.
na rádio leram há pouco um poema de Inger Christensen:
poema maravilhoso, peneirando luz, vivo em cada palavra,
entre cada imagem
nunca tinha ouvido falar de Inger Christensen
agora na mesma estação escuto a Berceuse de Armas Järnefelt.
tocam ao violoncelo Sepp Laemanen e Jouni Somero ao piano
nunca me tinha cruzado com estes nomes
a manhã enfeia, lenta, vertiginosa, repleta de asfalto e frio nos pés.
de passagem os campos ralos acenam-me,
árvores quase tristes sufocam no nevoeiro.
novembro é uma sombra que em mim se abotoa.
chego ao destino, brutal como betão armado, sólido,
estúpido e infeliz
penso no poema, na música, no embalar do carro.
nunca tinha ouvido falar de Inger Christensen, nem em Järnefelt.
palpo o bolso do casaco, anoto a emoção, seguro-me ao alto.
sou um ignorante – é extraordinário
o que sobrou dalgum antigo império seguramo-lo
agora nas mãos: barro, água salgada,
resquícios de azeite ou de vinho, restos
de garum, fragmentos escassos dalguma
essência rara
a nós o enviaram os velhos deuses
preteridos, a nós o enviaram como
se envia para longe, a alguém, uma derradeira
mensagem antes da
capitulação
asseguremo-nos, por isso, de que o tempo
faz justiça, de que a palavra soterrada
pelo silêncio e pelas marés permanecerá
íntegra e preciosa, límpida
e viva
venho aqui com o Nilo muitas vezes, nenhuma igual a todas as outras, sempre à espera que a hora do dia em que vimos traga algum milagre, qualquer coisa que se assemelhe à poesia: pode ser o movimento da lua por entre os ramos dos choupos, o som corrente da água até ao açude e depois dele, o frio súbito que se sente ao atravessarmos a pequena ponte de pedra, a alegria estonteante dos pássaros um pouco antes de cair a noite – melros, pardais, estorninhos, pintassilgos, escrevedeiras, todos juntos, cada qual com o seu particular chilreio, dentro dos velhos muros do passal – eu e o cão, pisando a terra mole que a chuva recentemente empapou, à espera do milagre da poesia que nunca fica por achar
esta é uma transumância pelo tempo. nunca sei em que época da minha vida viajo, nem em que sonhos hei de tropeçar, ou em que versos de alguém aconchegar-me. entramos agora num quelho musgoso, num caminho antiquíssimo – já o era na minha infância – ladeado de altas fileiras de rebos pontiagudos até aos degraus de acesso a uma casa agora em silêncio, outrora vivida e habitada, em cuja eira branquejam ainda as lajes sob o halo do luar, em cujo quintal dão fruto ainda as figueiras e as cerejeiras e abrunheiros repetem a sua flor maravilhosamente alva e delicada, em cujos taludes se iluminam ainda as calêndulas e margaridas-do-campo, a saxífraga, os botões-de-ouro brancos, as quelidónias, a morugem, os olhos-de-gato, os lírios brancos e roxos, os pampilhos, os malmequeres comuns, às tantas as rosas bravas, antes delas os cachos poderosos e perfumados das glicínias
a terra enche-se destas presenças todos os anos, aconteça o que acontecer no mundo, indiferentes à humanidade e ao canídeo truculento, que de vez em quando as mata com urina de macho dominante. e nesta persistência encontro eu o otimismo: nem tudo é mau ou péssimo, há ainda o meu paraíso – pequeno é certo, sazonal é verdade, mas outro virá e eu virei com o Nilo todos os dias ao anoitecer, cansado do mundo e à espera que os pés me ajudem a lembrar quem sou, quem fui, e que um poema chegue ao fim honesto e limpo como esta terra em que nasceu
entre as escarpas e os talhões de terra vulcânica, há uma estrada limpíssima a perder de vista, bordejada por um muro contínuo – não muito alto, perfeitamente geométrico – de pedra basáltica. de um lado, em baixo, o oceano com a mansuetude da ilha Graciosa. do outro lado, a terra ocre e os retângulos frisados deste chão de grânulos negros onde os nossos sapatos caminham com dificuldade. ao fundo, a encosta imponente do La Corona. são sete da tarde. o nevoeiro sobe rapidamente do mar, galgando os píncaros e atravessando à nossa frente a estrada de que falo. ocultado e desocultado pelo vapor, o sol deixa tudo a contraluz: e é a beleza das imagens assim nascidas da neblina, a silhueta depurada dos nossos corpos, a distância tão breve do abismo, o som das vozes que aparecem e desaparecem – que se desvanecem ao longo da estrada – é esse instante antes do crepúsculo, acima das origens, tudo o que nos fica